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OPINIÃO ECONÔMICA
Isso é o crime!
PAULO RABELLO DE CASTRO
Eles estavam ali, anunciando o "assalto sobremesa",
dispostos a depenar os indefesos
clientes do restaurante a quilo
que se alinhavam, entre desatentos e encurralados, pelas fitas de
separação dos três ou quatro caixas do estabelecimento. Eram
quase 15h. O movimento era, sobretudo, de saída. Os fregueses
estavam pagando para esvaziar
o restaurante, um dos melhores
do gênero, na região chique da
avenida Berrini, em pleno centro
financeiro novo de São Paulo, a
menos de 300 metros da delegacia do bairro.
Eu também estava lá. A lei das
probabilidades me brindara estar ali, no meio da fila, com uma
nota de R$ 50 na mão, pronto para pagar pelo almoço expresso.
Mas agora pagava pelo assalto
relâmpago.
Como sempre, tudo acontecera
de repente e muito rápido. Após
anunciar o assalto, como eficiente firma de "limpeza", os três meliantes dividiram-se na execução
da tarefa. O mais baixo, ainda
"de menor", meio encorpado pela jaqueta de tamanho exagerado e de boné que escondia a pouca idade, brandia um enorme revólver calibre 38, cano longo, visivelmente pesado para um braço frágil e um tanto descontrolado. A ameaça do disparo a esmo
ficava maior pelo nervosismo das
ameaças de sua voz ainda fina.
Passaram alguns segundos para
cair a ficha. Era uma garota, com
os cabelos e o resto da sua feminilidade escondidos debaixo do boné. O outro, um tipo alto e forte,
de olhos frios, executava a coleta
de dinheiro, celulares, relógios e
de todo o caixa sobre o balcão
diante das empregadas apavoradas. Um terceiro montava guarda à porta de saída da rua para
conferir o "timing" do serviço e
evitar surpresas.
Um dos rapazes assaltados na
fila demorava a enfiar a mão no
bolso e a produzir sua contribuição ao grupo. A impaciência da
líder era visível. Apontou a arma
direto para o peito do jovem e
disparou a frase definitiva: "Afinal, o que você está pensando?
Vamos logo. Isso é o crime!".
Só pude apreciar melhor os
contornos exegéticos desse verdadeiro discurso da criminalidade
quando o assalto terminou, felizmente sem as lesões corporais
que, de resto, infestam as estatísticas de vítimas da violência de
todos os tipos e tamanhos em
nosso país. Dessa feita, ficara
apenas a inevitável perturbação
do espírito, além da lição contida
naquela frase martelando em
minha cabeça.
Isso é o crime", vejam a associação do pronome neutro e do
artigo definido. A jovem delinquente resumira em apenas quatro palavras toda a superioridade técnica, estratégica e "moral"
do crime em nossa sociedade. Isso não é um assalto, indefinido,
solitário, quase desesperado. Isso
não é mais a iniciativa de um
qualquer meliante, na delinquência de ocasião. Isso com toda a neutralidade "comercial"
do pronome, nem masculino
nem feminino é o crime! Isso é o
(sindicato) do crime, o (colégio)
do crime, a (organização) do crime. O crime no Brasil ganhou
status. O crime, neste país, exige
respeito! Aquela garota exibia
seu "38" como uma fiscal de rendas, aquela arma era sua autoridade, constituída e ratificada pelo poder de matar, de tirar a vida
do seu "contribuinte" sem nenhum remorso, como quem cobrasse um imposto atrasado, numa correspondência fria da Receita Federal, ainda que o desarmado cidadão já tivesse feito seu
recolhimento na época certa.
O Estatuto do Desarmamento,
como está conhecido o projeto a
ser votado nesta semana na Câmara dos Deputados, é apenas o
começo de uma longa batalha
pelo resgate da cidadania ante o
status do crime e o arbítrio da
violência pelas armas de fogo. O
preço da violência no Brasil é
muito baixo para quem a pratica
e alto demais para quem a sofre.
É necessário inverter essa equação já. O projeto relatado pela corajosa deputada Laura Carneiro
(PFL-RJ) abre uma importante
janela para o reequilíbrio de forças entre as armas de fogo e as armas da lei.
Mas outros passos largos terão
que ser dados. Quando a delinquente exige respeito para a instituição do crime, não é só respeito à arma de fogo que ela impõe:
ela nos lembra que faz parte de
uma extensa cadeia de negócios,
desde o suprimento da sua "ferramenta" de trabalho, da droga
cheirada para lhe dar o empurrão final à ação e, em seguida, às
organizações de interceptação e
reciclagem do produto do roubo.
Por cima de tudo, paira também
a noção da sociedade permissiva,
em que os assaltos financeiros e
tributários são praticados até em
nome da boa teoria econômica e,
destruindo os empregos dos cidadãos, redefinem para os jovens o
caminho alternativo do sucesso
fácil mitificado pelo glamour da
vida dos ricos por meio das novelas e revistas.
Enfim, chegamos ao ponto, em
nossa sociedade, em que podemos conferir a realidade à profecia do imortal Ataulpho Alves,
quando dizia: "A maldade dessa
gente é uma arte".
Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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