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São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Isso é o crime!

PAULO RABELLO DE CASTRO

Eles estavam ali, anunciando o "assalto sobremesa", dispostos a depenar os indefesos clientes do restaurante a quilo que se alinhavam, entre desatentos e encurralados, pelas fitas de separação dos três ou quatro caixas do estabelecimento. Eram quase 15h. O movimento era, sobretudo, de saída. Os fregueses estavam pagando para esvaziar o restaurante, um dos melhores do gênero, na região chique da avenida Berrini, em pleno centro financeiro novo de São Paulo, a menos de 300 metros da delegacia do bairro.
Eu também estava lá. A lei das probabilidades me brindara estar ali, no meio da fila, com uma nota de R$ 50 na mão, pronto para pagar pelo almoço expresso. Mas agora pagava pelo assalto relâmpago.
Como sempre, tudo acontecera de repente e muito rápido. Após anunciar o assalto, como eficiente firma de "limpeza", os três meliantes dividiram-se na execução da tarefa. O mais baixo, ainda "de menor", meio encorpado pela jaqueta de tamanho exagerado e de boné que escondia a pouca idade, brandia um enorme revólver calibre 38, cano longo, visivelmente pesado para um braço frágil e um tanto descontrolado. A ameaça do disparo a esmo ficava maior pelo nervosismo das ameaças de sua voz ainda fina. Passaram alguns segundos para cair a ficha. Era uma garota, com os cabelos e o resto da sua feminilidade escondidos debaixo do boné. O outro, um tipo alto e forte, de olhos frios, executava a coleta de dinheiro, celulares, relógios e de todo o caixa sobre o balcão diante das empregadas apavoradas. Um terceiro montava guarda à porta de saída da rua para conferir o "timing" do serviço e evitar surpresas.
Um dos rapazes assaltados na fila demorava a enfiar a mão no bolso e a produzir sua contribuição ao grupo. A impaciência da líder era visível. Apontou a arma direto para o peito do jovem e disparou a frase definitiva: "Afinal, o que você está pensando? Vamos logo. Isso é o crime!".
Só pude apreciar melhor os contornos exegéticos desse verdadeiro discurso da criminalidade quando o assalto terminou, felizmente sem as lesões corporais que, de resto, infestam as estatísticas de vítimas da violência de todos os tipos e tamanhos em nosso país. Dessa feita, ficara apenas a inevitável perturbação do espírito, além da lição contida naquela frase martelando em minha cabeça.
Isso é o crime", vejam a associação do pronome neutro e do artigo definido. A jovem delinquente resumira em apenas quatro palavras toda a superioridade técnica, estratégica e "moral" do crime em nossa sociedade. Isso não é um assalto, indefinido, solitário, quase desesperado. Isso não é mais a iniciativa de um qualquer meliante, na delinquência de ocasião. Isso com toda a neutralidade "comercial" do pronome, nem masculino nem feminino é o crime! Isso é o (sindicato) do crime, o (colégio) do crime, a (organização) do crime. O crime no Brasil ganhou status. O crime, neste país, exige respeito! Aquela garota exibia seu "38" como uma fiscal de rendas, aquela arma era sua autoridade, constituída e ratificada pelo poder de matar, de tirar a vida do seu "contribuinte" sem nenhum remorso, como quem cobrasse um imposto atrasado, numa correspondência fria da Receita Federal, ainda que o desarmado cidadão já tivesse feito seu recolhimento na época certa.
O Estatuto do Desarmamento, como está conhecido o projeto a ser votado nesta semana na Câmara dos Deputados, é apenas o começo de uma longa batalha pelo resgate da cidadania ante o status do crime e o arbítrio da violência pelas armas de fogo. O preço da violência no Brasil é muito baixo para quem a pratica e alto demais para quem a sofre. É necessário inverter essa equação já. O projeto relatado pela corajosa deputada Laura Carneiro (PFL-RJ) abre uma importante janela para o reequilíbrio de forças entre as armas de fogo e as armas da lei.
Mas outros passos largos terão que ser dados. Quando a delinquente exige respeito para a instituição do crime, não é só respeito à arma de fogo que ela impõe: ela nos lembra que faz parte de uma extensa cadeia de negócios, desde o suprimento da sua "ferramenta" de trabalho, da droga cheirada para lhe dar o empurrão final à ação e, em seguida, às organizações de interceptação e reciclagem do produto do roubo. Por cima de tudo, paira também a noção da sociedade permissiva, em que os assaltos financeiros e tributários são praticados até em nome da boa teoria econômica e, destruindo os empregos dos cidadãos, redefinem para os jovens o caminho alternativo do sucesso fácil mitificado pelo glamour da vida dos ricos por meio das novelas e revistas.
Enfim, chegamos ao ponto, em nossa sociedade, em que podemos conferir a realidade à profecia do imortal Ataulpho Alves, quando dizia: "A maldade dessa gente é uma arte".


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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rabellodecastro@uol.com.br


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