São Paulo, domingo, 17 de outubro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Barrados no baile?

RICARDO CARNEIRO

Um tema crucial do debate econômico é o da sustentação do incipiente crescimento da economia brasileira iniciado em 2004. Abordar esse assunto exige examinar dois tipos de condicionante: os impactos do cenário internacional favorável e as implicações da estratégia de política econômica adotada após 2003.
A economia internacional vem ganhando momento no último triênio e, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional, o PIB (Produto Interno Bruto) global deve crescer, neste ano, algo como 5%, e o comércio, 9%, valores típicos da "idade de ouro". O desempenho dos países emergentes mostra os efeitos favoráveis dessa conjuntura. Entre 2001 e 2003, nosso crescimento médio anual (2%) esteve longe de acompanhar o dos grandes emergentes, China (11%), Rússia (9%) e Índia (7%), ou o dos pequenos asiáticos (média de 6%). Esse ritmo de expansão dá uma idéia do quão acanhada é nossa performance mesmo na hipótese de dobrarmos a evolução do PIB.
O cenário externo favorável amenizou a nossa principal restrição ao crescimento, a externa. Isso pode ser visto por meio dos indicadores de vulnerabilidade. No caso da liquidez, a melhora foi menos substantiva e estacionou no início de 2004 com a constância do montante de reservas. O grande progresso é observável na solvência por conta do crescimento excepcional das exportações.
Não seria exagero atribuir à política econômica atual uma contribuição negativa a esse quadro. Diante de uma forte ampliação da liquidez e do comércio internacionais, a opção foi alargar os ganhos imediatos através da apreciação da moeda nacional, com implicações na velocidade de queda da inflação e com ganhos patrimoniais na dívida pública. Sacrificou-se, assim, o aumento substantivo das reservas internacionais e a maior competitividade das exportações de manufaturados.
Os benefícios de uma posição de liquidez mais robusta não seriam desprezíveis, implicando maior resistência às flutuações dos mercados financeiros internacionais e a seus intermitentes fechamentos para países de maior risco, como o Brasil. A competitividade das exportações com base em taxa de câmbio mais desvalorizada parece discutível à luz do seu excepcional desempenho. Todavia não se deve subestimar a importância da taxa de câmbio como instrumento de mudança da pauta na direção de bens de maior conteúdo tecnológico, menos suscetíveis às marcadas variações cíclicas, de preços e quantidades, próprias das commodities, das quais dependemos em excesso.
Há argumentos favoráveis às opções de política econômica realizadas pelo governo. Esses se assentam na hipótese da permanência do cenário externo favorável e, por isso mesmo, na inutilidade do sacrifício do acúmulo adicional de reservas ou de taxas de câmbio desvalorizadas. Afinal, bastaria praticar políticas econômicas ortodoxas para ganhar a confiança dos mercados e obter acesso a eles em condições cada vez melhores. Ademais, com a expansão do comércio internacional assegurando elevadas taxas de crescimento das exportações, a valorização cambial permite reduzir a inflação e a dívida pública, reforçando a credibilidade do país.
A continuidade do crescimento do comércio e da liquidez nos moldes observados após 2001 é duvidosa. Na raiz da sua improbabilidade estão os crescentes desequilíbrios internacionais, cujo epicentro é a economia americana. Grande ênfase tem sido conferida aos recorrentes déficits em transações correntes dessa economia, hoje rondando os 5% do PIB, e a seu financiamento por uma particular articulação com os países asiáticos. Todos, inclusive o FMI, se perguntam: até quando? Há outros problemas menos discutidos, porém de igual ou maior relevância, como as bolhas de preços nos vários mercados de ativos (imobiliário, ações, bônus, commodities), que engendram desequilíbrios de solução mais intrincada e custosa.
Ora, se isso é verdade, não parece boa política para quem é classificado como um "país de grau de risco especulativo", fiar-se na preservação da atual conjuntura internacional. Teria sido preferível aproveitar o momento para criar as bases de uma inserção externa de melhor qualidade, em particular mais resistente às turbulências que certamente virão. Não tê-lo feito pode custar mais uma vez ao país ser barrado no baile do desenvolvimento.


Ricardo Carneiro, 52, é professor do Instituto de Economia e diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da Unicamp. Escreverá uma vez a cada quatro domingos, em substituição à economista Maria da Conceição Tavares.

E-mail - carneiro@eco.unicamp.br


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