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LUÍS NASSIF
O herdeiro de Baden
Coloco no aparelho o CD
"Ceará Violão Solo". Vou
direto à faixa seis, "Siá Mariquinha". Pela primeira vez fico
sabendo o nome dos autores,
Luiz Assunção e Evanor Pontes.
Acho que, lá pelos idos dos 70,
Ednardo, do grupo do Ceará, andou gravando.
Mas minha memória mergulha mais fundo e chega à voz límpida de dona Tereza juntando os
filhos em torno da cama e cantando os versos tristes. A única
diferença era o nome: Siá Maroquinha. "Siá Maroquinha, sua
casinha tinha / sua bela casinha,
dos tempos de amor / Mas veio a
chuva / de riba da serra / pegou
com a casinha e esfrangalhou /
Ai, ai, siá Maroquinha, isso não é
brinquedo / me diga se saudade
mata, se saudade mata / que já
estou com medo".
Incrível o que versos tão singelos podiam fazer com a imaginação de uma criança no interior.
Passava horas cantando obsessivamente a música. E morria de
pena da Sá Maroquinha.
Mais tarde, na adolescência,
resgatar o Nordeste da seca, dos
coronéis, era prioridade da nossa
geração, tudo estimulado pelo
sentimento de solidariedade
plantado pela canção popular.
No encarte do CD, Nonato Luiz
diz que o arranjo que fez transformou "Siá Maroquinha" em
peça apoteótica, utilizada para
abertura de concertos na Europa.
Ficou linda, de fato.
Fiquei pensando tão longe com
a "Siá Mariquinha" ou "Sá Maroquinha" que só agora chego ao
tema desta coluna, o violonista
Nonato Luiz.
Tempos atrás, reclamei do excesso de malabarismo que campeia em certa área do violão brasileiro. Mas o violão chorado
continua firme e rijo. Entre esses
violonistas, há alguns conhecidos
apenas no meio, mas dos quais se
identifica o som pelo cheiro. Um
deles é Geraldo Ribeiro, que fez
sucesso no final dos anos 70, depois embarcou para os Estados
Unidos, voltou e está lecionando
em Tatuí. Lá no conservatório da
cidade há também o som portentoso de Francisco Araújo.
Nonato Luiz pertence a essa estirpe. É um estupendo violonista,
da melhor escola nordestina de
João Pernambuco, conhecido no
circuito Rio-São Paulo apenas
pelos aficionados.
E não porque esteja no Ceará.
Na verdade, ele deve dormir por
lá, porque seu destino é a Europa. Hoje em dia é dos violonistas
brasileiros mais prestigiados no
mundo, transitando do popular
ao erudito. Sua "Suíte Sexta em
Ré", editada pela Henri Lemoine
(Paris), sob a coordenação dos irmãos Assad, abriu caminho para
a produção de Nonato ser incluída no repertório de alguns dos
maiores violonistas e nas melhores salas de concerto do planeta.
Nonato iniciou sua carreira no
início dos anos 70, quando baixou em Fortaleza Darcy Villa
Verde, violonista de renome. Timidamente, Nonato telefonou
para o hotel e pediu que mostrasse suas músicas. Darcy concordou, sem muito entusiasmo. Bastou ouvi-lo para Nonato ser incorporado à troupe de Darcy.
Dali, praticamente sem ser notado pela crítica, começou uma
carreira que hoje lhe dá renome
internacional. Há uma empresária austríaca que todos os anos
promove uma turnê sua por Alemanha, Suíça, Itália e Áustria.
Tem três CDs lançados na Alemanha e relançados no Brasil.
É imensa a lista de violonistas
que executam obras suas. O japonês Shin-ichi Fukuda gravou
"Mosaico", da "Suite e, Ré Menor". O "Baião Cigano", uma peça à altura da melhor tradição
brasileira de violão, recebeu letra
de Fausto Nilo, virou "Baião da
Rua", venceu um Prêmio Sharp e
chegou a ser gravado nos Estados
Unidos por uma cantora de jaz,
April Aloisio.
No site é possível saber tudo sobre sua vida e adquirir CDs. Se
pudesse sugerir um, seria o show
ao vivo no Mistura Fina, acompanhando Fernando Rocha.
Ele transita pelo clássico e pelo
popular da mesma maneira. É filho direto de Baden, neto de João
Pernambuco, na pegada, no balance, na exploração de cada
nuance do violão, com a sensibilidade do amante que conhece
cada ponto da mulher.
Perto da meia-noite, encerro a
coluna ao som de uma ciranda e
que reforça em mim o encantamento de ser brasileiro.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
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