São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Argentina: o triunfo na agonia

RUBENS RICUPERO

"O impensável está se tornando inevitável." Assim começava, há cerca de um mês e meio, artigo no "Financial Times" de Ricardo Hausmann. Particularmente profético era o final do primeiro parágrafo: "Se o FMI não puder chegar a acordo com a Argentina sobre um programa econômico, o país não poderá e não deveria pagar os credores oficiais internacionais -o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento". No original inglês é mais forte: "The country will and should default", isto é, uma constatação de fato inelutável ("will") reforçada por algo de aconselhável nas circunstâncias ("should").
Como se sabe, o inimaginável passou a ser história no dia 14 de novembro, quando a Argentina decidiu não efetuar o pagamento de US$ 805 milhões ao Banco Mundial. O surpreendente na opinião antecipatória de Hausmann é o autor: ex-economista-chefe do BID, professor de Harvard, ministro da Economia da Venezuela, em inícios dos 90, responsável pelo programa econômico com endosso do FMI, contra o qual se desencadearam os sangrentos motins que deram início às persistentes convulsões venezuelanas, primeira manifestação do novo ciclo de instabilidade da América do Sul pós-consenso de Washington. Trata-se de economista ortodoxo, defensor, não faz muito tempo, da dolarização.
Como é possível que pessoa dessas impecáveis credenciais tenha de admitir o calote mais grave, o dirigido contra as instituições oficiais? Por um raciocínio de lógica econômica igualmente impecável. A única razão pela qual as instituições continuam a ser pagas, mesmo quando se suspendem os pagamentos aos demais credores, é a suposição de que elas seguirão aportando recursos ao país devedor. No momento em que as entidades oficiais apenas extraem dinheiro de um país, sem fornecer novos fundos, deixa de existir justificativa para que os outros credores prejudicados lhes outorguem esse estatuto de credor preferencial. Ora, no corrente ano, as instituições já arrancaram da Argentina cerca de US$ 4 bilhões e esperavam bombear mais US$ 3 bilhões até o fim do ano.
As reservas argentinas estão em US$ 9 bilhões e alcançariam para pagar o Banco Mundial agora. Acontece que em janeiro o país terá de saldar US$ 1 bilhão ao FMI e US$ 3 bilhões mais em março. O total de pagamentos aos organismos financeiros em 2003 será de US$ 10 bilhões, superando o nível das reservas. Portanto, hoje ou amanhã, a inadimplência será inevitável. Hausmann teme, sobretudo, o efeito desastroso que isso teria sobre o BID, que emprestou à Argentina quase 100% do seu capital realizado e que perderia, nesse caso, sua classificação AAA.
Por que então não se ajuda o nosso vizinho a obter um indispensável reescalonamento de pagamento de emergência? A explicação, segundo o autor, é que, mesmo para firmar um programa mínimo, à espera de que o governo a ser eleito em março possa negociar pacote mais ambicioso, o FMI insiste numa "lista de exigências bem-intencionadas, mas secundárias". Na ausência da concessão mínima do reescalonamento, conclui, "a Argentina não deveria pôr-se em perigo a si mesma e a seus outros credores por tentar efetuar pagamentos vultosos às instituições (já que) ela tem pouco a perder se isso lhe valer mais um olho inchado".
A essa linha de argumentação rigorosamente econômica, pode-se e deve-se acrescentar outra de mais alta hierarquia moral. Tanto o FMI quanto o Banco Mundial têm hoje, como objetivo central, a erradicação da pobreza, afirmando que a meta é perfeitamente compatível com a política macroeconômica que recomendam. O caso argentino é um teste importante dessa declarada compatibilidade. Graças à reservas, o governo Duhalde logrou ultimamente estabilizar a moeda em torno da cotação de 3,5 pesos por dólar (melhor que a nossa). Melhorou um pouco, assim, a situação dos mais vulneráveis, pois a "cesta de subsistência", extremamente dependente do câmbio (quase todos os componentes são alimentos exportáveis: carne, trigo, azeite, etc.), começou a apresentar relativa estabilidade após encarecer 70%, desde outubro de 2001.
O governo tomou outras medidas para aliviar a situação. Por exemplo, suspendeu primeiro por 30 dias, prorrogados por três meses, a repossessão pelos credores dos imóveis hipotecados em atraso; adicionalmente, só aceitou conceder 10% de reajuste às tarifas de serviços públicos privatizados, em vez dos 30% a 50% reclamados pelos concessionários e os 30% desejados pelo FMI. Essas decisões estão sendo contestadas pelo Fundo em nome de princípios doutrinários, igualmente invocados para exigir um saldo primário fiscal de 2,5%. Como se esses princípios teoricamente "corretos" pudessem ser aplicados num país com brutal encolhimento do PIB (menos 15% desde o ano passado), onde as pessoas abaixo da linha de pobreza nos centros urbanos somam 53% (70% no nordeste argentino) e os abaixo do nível de subsistência são 25% nacionalmente e 39% no nordeste (dados oficiais do Indec até maio).
Até que ponto será possível esticar a corda em nações como a Argentina e o Uruguai, em recessão há mais de quatro anos, indo para cinco, sem que ocorra convulsão social de grandes proporções? Outros países da região serão mesmo "ilhas" ou "oásis" de exceção, como se diz, ou a diferença está mais na data em que começou a recessão, sendo o resto questão de tempo?
Para um povo, recessão desse tipo, sem perspectivas de acabar, é como morrer aos poucos, mergulhar em interminável agonia. Não será então melhor dar um sentido à agonia? Que melhor sentido do que deslocar a questão do terreno financeiro para o social, para o da sobrevivência dos pobres e vulneráveis?
Na carta escrita ao filho ao receber a injusta sentença de morte, o anarquista Bartolomeo Vanzetti dizia que poderia ter morrido despercebido, ignorado, um fracasso, não fosse a injustiça da acusação. Nunca, em toda a vida, ele e Sacco poderiam ter esperado fazer tanto pela tolerância, pela justiça, pela compreensão entre os homens como devido a esse acidente. Diante disso, nada eram suas palavras, suas dores, a entrega de suas vidas -a vida de um bom sapateiro e de um pobre vendedor de peixes. E terminava: "Esse último momento pertence a nós- essa agonia é o nosso triunfo".


Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

E-mail -
rubensricupero@hotmail.com


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