São Paulo, domingo, 17 de novembro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Transmissão, divergências e transparência

ALOIZIO MERCADANTE

A vitória consagradora de Lula nas eleições representou uma demonstração inequívoca da vitalidade da democracia brasileira. O clima de otimismo, deflagrado por esta eleição, quando a esperança derrotou o medo, permitiu iniciativas inéditas na história política do país.
Em primeiro lugar, a convocação de um pacto social com a participação ampla dos mais diversos segmentos do empresariado, das centrais sindicais e de entidades não-governamentais. A criação de um futuro Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social abre um novo espaço de articulação da sociedade civil e um canal para a formulação de políticas públicas com ampla participação da sociedade.
Igualmente importante foi a definição de um processo negociado de transição política. A constituição de um grupo de técnicos do novo governo que está tendo acesso a dados e a informações relevantes para a definição das novas políticas públicas também é um importante avanço institucional e um reflexo do amadurecimento democrático do Brasil -inovação que os presidentes Fernando Henrique Cardoso e Lula deixam para o futuro do país.
Apesar de todos esses avanços, o presidente FHC e outras autoridades do governo têm afirmado, reiteradamente, que o país está pronto para reduzir as taxas de juros e ingressar em uma trajetória de crescimento sustentado. Em viagem ao exterior, o presidente afirma que nem fome existe no país, apenas a subnutrição localizada, e ministra aulas de como o novo presidente deveria agir. Ou seja, o próximo governo herdará um país em ótimas condições econômicas e sociais e, portanto, será de sua exclusiva responsabilidade qualquer desequilíbrio ou problema que se apresente.
É difícil entender essas afirmações no atual contexto. Para começar, a taxa de juros que se diz pronta para cair foi aumentada recentemente em três pontos percentuais -de 18% para 21%. A taxa de câmbio, mesmo com a queda após a eleição de Lula, mostra valorização do dólar de quase 60% em relação a dezembro passado. A relação dívida/PIB não só está muito acima dos limites fixados como tem aumentado sustentadamente ao longo do ano. E a inflação -que nos últimos dois anos sempre ficou acima das metas estabelecidas nos acordos com o FMI, coisa que também ocorrerá neste ano- está fortemente represada, como apontam o Índice de Preços por Atacado e o Índice Geral de Preços do Mercado, da Fundação Getúlio Vargas, índices cujos aumentos no ano já atingiram 19,88% e 14,82%, respectivamente. Para não falar no medíocre crescimento do PIB (estimado em 1,5% para 2002), no péssimo desempenho da indústria e no elevado nível de desemprego, beirando os 20% em São Paulo e infelicitando um contingente de aproximadamente 11,7 milhões de trabalhadores em todo o país, expostos à pobreza e à fome, especialmente na região Nordeste.
Ao mesmo tempo aumentam as pressões, internas e externas, para a continuidade da atual política econômica. Aparentemente, estão todos empenhados em manter os "avanços" decorrentes das "políticas sólidas" praticadas pelo governo FHC. As mesmas políticas que conduziram à desvalorização do real em janeiro de 1999, com enormes custos econômicos e sociais para o país, e que, posteriormente, atrelaram a economia brasileira ao FMI, submergindo-a em uma crise permanente, que se vem agravando desde outubro do ano passado.
Alguns números ajudam a entender o porquê da insistência na continuidade do atual modelo econômico. De 1995 a 2001, o Brasil amortizou US$ 206,7 bilhões de sua dívida externa, que, no entanto, cresceu US$ 61,6 bilhões no mesmo período. O passivo externo total, que, além da dívida externa, inclui o aumento do estoque de capital estrangeiro no país, aumentou em US$ 202,3 bilhões. Nesses sete anos, entre juros e lucros e dividendos, remetemos US$ 140 bilhões para o exterior. As transferências patrimoniais, via privatização de empresas públicas, somaram, no período, US$ 93,4 bilhões, dos quais US$ 45,1 bilhões correspondem à participação do capital estrangeiro. A dívida mobiliária federal aumentou, em termos nominais, em R$ 562,3 bilhões, dos quais R$ 373,4 bilhões correspondem à conta de juros do governo central. O lucro dos bancos aumentou 355% nesse período.
Faltaria agregar a esses números os dados relativos à atual crise cambial. Sobre esta há alguns indicadores parciais ilustrativos: somente em setembro passado os bancos obtiveram ganho de R$ 1,4 bilhão nas operações com títulos cambiais, e o Banco Central perdeu R$ 8,9 bilhões em operações no mercado futuro. Alguns investidores ficaram sócios da desvalorização e faturaram cerca de R$ 5 bilhões, segundo estimativas da Receita Federal. Além disso, a elevação da taxa de câmbio e da taxa de juros agregou algumas dezenas de bilhões de reais à dívida pública federal.
Como é evidente para os que aplicam no mercado financeiro daqui e, principalmente, de fora, as políticas adotadas nesses quase oito anos foram extremamente positivas. Têm razão, então, em querer a sua continuidade. Para a produção, que apresentou taxa média de crescimento de apenas 2,3%, perdeu participação no comércio externo, assistiu ao atraso nos investimentos em setores estratégicos da infra-estrutura e dos serviços públicos e ainda se tornou dependente do FMI, essas políticas foram extremamente destrutivas. Além de desestruturar e desnacionalizar a economia, agravaram a enorme dívida social que o país arrasta desde sua formação histórica, elevando o desemprego a níveis sem precedentes, condenando à pobreza mais de 50 milhões de brasileiros e aumentando ainda mais as desigualdades sociais preexistentes. Tão democrático como a transição negociada é expressar com transparência as profundas divergências que nos separam.
A crise que vivemos é de responsabilidade quase exclusiva do atual governo, e não se resolverá de um dia para o outro. Ao contrário do que sugerem as autoridades econômicas que estão terminando o mandato, as restrições existentes nas esferas cambial, monetária e fiscal projetam-se como uma sombra sobre o futuro do país e exigirão um notável e coordenado esforço de toda a sociedade para superá-las e para que se possa avançar na solução, inadiável, da questão social. O país tem vitalidade, capacidade e recursos para vencer esses obstáculos. Isso, no entanto, requer a mudança do atual modelo econômico. E o clima de otimismo e de esperança que nasce desse encontro inédito entre o Palácio do Planalto e as ruas, governo e movimentos sociais, está fundado no compromisso de mudança com responsabilidade que o presidente Lula representa. Mudar, mudar com profundidade o Brasil.


Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.

Internet: www.mercadante.com.br

E-mail -
dep.mercadante@camara.gov.br


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