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OPINIÃO ECONÔMICA
O continente da tristeza
RUBENS RICUPERO
"Apenas respirei sua atmosfera, batizei a América do Sul de Continente da Tristeza". Tranqüilizem-se os que se espantarem com esse disparate, inspirado, creio, pelo fatalismo lacônico dos índios do Altiplano. O
autor, hoje quase esquecido, foi
Keyserling, que teve sua voga nos
anos 30, mas escrevia muito despropósito. Embora o mesmo não
se possa dizer de Lévi-Strauss,
que, ao evocar os tempos vividos
em nossos trópicos, também os
chamou de tristes...
Seja como for, tudo isso era subjetivo, impressionístico. Quem
exigir razões sólidas, objetivas,
para a tristeza, não tem de procurar muito longe. Basta folhear o
balanço preliminar das economias da América Latina e do Caribe 2003, publicado na véspera
do Natal pela Cepal (Comissão
Econômica das Nações Unidas
para a América Latina). Em termos absolutos, até que melhoramos um pouco. Após o encolhimento de 2002 (menos 0,4%), o
PIB cresceu 1,5%. Quando se leva
em conta o crescimento da população, contudo, constata-se que o
produto per capita é ainda 1,5%
inferior ao que era em 1997: em
outras palavras, caminhamos para trás.
Houve também alguma melhora no financiamento externo.
Não o suficiente, porém, para evitar que a região continuasse a
transferir para o exterior mais dinheiro do que recebe. Em 2002, tinham sido US$ 40,2 bilhões, reduzidos, em 2003, a US$ 29 bilhões,
correspondentes a quase 7% do
valor das exportações. Foi o quinto ano seguido de transferência líquida de recursos para o estrangeiro. Durante o quinqüênio, a
saída acumulada de capital equivale a 5% da riqueza produzida.
O contra-senso continua: um continente anêmico doa sangue para
que os abastados se refocilem nos
déficits; gente que não tem onde
cair morta financia a obesidade
dos que se podem dar ao luxo de
invadir países ou planejar custosas explorações de planetas.
Ao longo da "semidécada perdida" (1997-2002), enquanto se
contraía o produto e o ingresso de
capitais autônomos descia à metade do quinqüênio anterior
(1994-1998), a única coisa que aumentava eram as remessas de lucros, dividendos e juros, que saltaram de US$ 50,8 bilhões em 2002
a US$ 54,8 bilhões em 2003. Conforme diz o relatório, "o peso desse último déficit se converteu em
traço estrutural da balança de
pagamentos regional, o que evidencia não só o alto endividamento, mas também o pagamento de dividendos e lucros gerados
pelas empresas estrangeiras instaladas na região". Não se passou
muito tempo para confirmar a
razão dos que advertíamos acerca do risco da entrada maciça de
capital estrangeiro concentrado
na privatização de serviços públicos e bancários, setores incapazes
de criar correntes adicionais de
exportação. O resultado é o que se
está vendo: mesmo em anos recessivos ou de estagnação, esses serviços garantem renda certa,
transferida para fora às custas
das divisas produzidas, basicamente, pelo saldo da agricultura.
Com efeito, a indústria, de maneira geral, não ajuda muito ou
contribui para o déficit, pois, em
boa parte da região, o espetáculo
a que se assiste não é o do crescimento, mas o da desindustrialização precoce. A Unctad tem sido
pioneira em denunciar o fenômeno, mas, hoje, outras entidades de
pesquisa, às vezes privadas, aportam complementos importantes à
descrição. Um desses estudos, por
exemplo, notava que, no início
dos anos 80, a América Latina ostentava, no mundo em desenvolvimento, o nível mais alto de valor agregado em manufaturas,
cerca de US$ 246 bilhões, 60% a
mais que toda a Ásia do Leste. Foi
a primeira região a abraçar com
fervor o Consenso de Washington
e a liberalizar, de modo drástico,
o comércio e o regime de investimentos, pondo fim, entre outras
coisas, à substituição de importações. Os asiáticos revelaram-se
muito mais coriáceos a aceitar esse conselhos. Segundo a doutrina
dominante, a América Latina deveria, graças a essa ortodoxia, ter-se tornado mais eficiente que outras regiões.
Ora, o que de fato ocorreu foi
que o continente estagnou na década de 1980. Suas exportações de
manufaturas cresciam à média
anual de 5,5%, enquanto o comércio mundial aumentava 8,7%
e as exportações asiáticas de manufaturas se expandiam 15,4%.
Em 2000, a Ásia do Leste já passara a representar quatro vezes
mais que a América Latina em
valor manufaturado agregado e
três vezes mais em exportações.
Na década de 1990, a América Latina aumentou em 1,3% sua participação no mercado mundial de
produtos de baixa tecnologia e
oriundos de recursos naturais e
em insignificante 0,6% no de manufaturas de média e alta tecnologia. É quase covardia comparar
essa pífia taxa com os 17% da
Ásia. Nos produtos mais dinâmicos, a Ásia abocanha 28% das exportações mundiais -equivalente a 87% do exportado pelos países em desenvolvimento-, contra 3% da América Latina.
Mudar tal panorama não será
fácil, pois a formação bruta de capital no continente permaneceu
quase estagnada em 2003 e seu
nível atual é 12,5% inferior ao
atingido cinco anos atrás. É de conhecimento geral que a taxa de
investimento brasileira foi uma
das mais baixas de que se tem
memória. "Os seis anos de crescimento negativo por habitante",
lamenta a Cepal, "causaram danos sociais que tardarão a serem
revertidos. Em 2003, há 20 milhões de latino-americanos pobres a mais que em 1997. A taxa
de desemprego cresceu dois pontos nesse período, ascendendo a
10,7%", (no Brasil, sabem os leitores, é de quase 13%). Faltando
pouco para completar dois séculos de vida independente, como
acaba de fazer o Haiti, a América
Latina se aproxima desse aniversário com a pobreza alcançando
44% de sua população.
Não nos faltam, portanto, razões para a tristeza. Pior que reconhecê-las é celebrar saldos comerciais conquistados graças a
desemprego e estagnação, que
não se traduzem no aumento das
reservas, e sim na transferência
de recursos ao exterior. No momento em que se aliviam as condições externas, o maior perigo é
a complacência, não o realismo
sóbrio diante do triste estado a
que fomos reduzidos. Exilados
junto aos rios de Babilônia, os hebreus penduraram as cítaras e
choraram, resistindo aos opressores, que lhes exigiam alegria na
tristeza. Não se trata da apagada
e vil tristeza da cobiça, mas da
que impele à ação para mudar,
pois "os que semearam entre lágrimas ceifarão com alegria, os
que partem chorando, com o saco
de sementes, voltam cantando,
carregados de espigas".
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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