São Paulo, quarta-feira, 18 de fevereiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Monetarismo sem moeda

PAULO RABELLO DE CASTRO

O soluço inflacionário das últimas semanas -sinal evidente de que o varejo, até mais que os atacadistas, tentará recuperar sua margem comprimida durante a recessão de 2003- reacendeu os medos da autoridade monetária acerca de um repique de preços. Hoje se conhecerá a extensão desse medo. Depois da reunião do Copom -o Comitê de Política Monetária do Banco Central-, ao final da tarde, saberemos qual a dosagem de juros por eles considerada compatível com o crescimento "tolerável" da economia brasileira.
O alvo do Banco Central é uma taxa de inflação anual, medida por índice ao consumidor, que hoje não cabe à sociedade discutir, muito menos contestar. A meta de inflação condiciona o ritmo dos negócios e das vendas no mercado interno. Indiretamente, a remuneração do trabalho também está condicionada de modo estreito às decisões do chamado Copom, que fixa os juros básicos, determinando o custo do financiamento das atividades produtivas em todos os segmentos dependentes de algum crédito bancário.
O Brasil é um país de escasso crédito para a produção e o comércio. Tem menos da metade da base de crédito considerada plausível para o andamento normal da produção e do comércio, que seria da ordem de 50% a 60% do PIB. O crédito é dominado pelo giro da dívida pública. O Banco Central controla o crédito rigidamente para atrair recursos para seu próprio mercado de papéis de dívida. Daí ser tão estreita a dependência dos segmentos produtivos à escassa fonte de liquidez. Tão escassa quanto incerta. Tão incerta quanto dominadora e pervasiva, já que é a torneira emperrada do Banco Central a origem quase exclusiva das sístoles e diástoles do processo produtivo.
Desde o advento da moeda real, nos últimos dez anos, a política monetária ganhou tamanho espaço que já não se ouve falar em crescimento econômico como alvo ou meta de política pública. Ainda no fim de semana, o ex-presidente FHC lembrava que "... os governos, em geral, são reféns do mercado, principalmente do mercado financeiro (...) o crescimento depende mais do mercado do que de políticas públicas..." ("O Globo", 15/2, pág. 10). A afirmação tampouco destoa da aparente convicção do governo Lula, que até agora não apresentou um planejamento amparado em metas quantitativas de crescimento da produção. O espetáculo do crescimento será o que for possível: não tem hora certa para começar nem programação de artistas. Depende do humor dos trapezistas e da boa vontade do leão.
Em compensação, a política monetária, apoiada sobretudo no torniquete dos juros, tem calendário rígido e execução rigorosamente acompanhada pelo mercado financeiro, cuja relação umbilical com a meta inflacionária torna frívola qualquer outra preocupação periférica ao comportamento da taxa Selic. É uma espécie de monetarismo do medo. Entretanto, passados dez anos de administração monetária com alto grau de autonomia operacional e quase total imunidade em virtude dos poderes constituídos, o balanço dos trabalhos do Banco Central, embora positivo no cotejo com a altura do desafio, estaria longe de poder ser considerado bem concluído. A estruturação de um padrão monetário, uma nova moeda, enfim, é tarefa de extrema complexidade, a ponto de requerer décadas inteiras até consolidar-se de modo confiável. O Plano Real se propôs a fazer isso. O controle da espiral inflacionária, até então dominada por mecanismos de indexação quase diária, representou um grande ganho inicial para a sociedade. Contudo a redefinição do padrão monetário parece ter parado por aí. Hoje vivemos, numa ênfase, um monetarismo sem moeda. Fascinado pelos êxitos iniciais da sua política de juros, o Banco Central foi compondo, quase involuntariamente, um novo círculo de interesses em torno desse instrumento, que propiciou ganhos crescentes aos nela envolvidos pelo lado do mercado, em desatenção e até em detrimento de quem dela dependesse, na voz passiva, como produtor de bens e serviços. O resultado desse desequilíbrio é inequívoco: a economia brasileira, em nenhum período de dez anos, no último século, cresceu tão pouco quanto entre 1994 e 2003. O ex-presidente FHC tem razão: foi uma política de alta dependência. O Brasil era refém da inflação até 1994. De lá para cá, passou a ser refém dos juros, cuja conta indigesta, só no ano passado, nos custou quase R$ 150 bilhões, cerca de 10% do PIB brasileiro. Não paira dúvida sobre a prevalência da política de juros altos e endividamento público galopante como causa principal do estancamento da economia doméstica.
Lula foi eleito para mudar. Mas logo descobriu que não existe margem de manobra possível fora da lógica circular que o próprio mercado financeiro criou como paradigma da estabilidade. Trata-se de uma verdade construída a partir do medo e da repetição, segundo a qual a estabilidade sem progresso é um indício, uma espécie de crisma, que marca o bom caráter da política conservadora e a intenção reta dos dirigentes.
A bem poucos ocorre perguntar por que essa estabilidade não é estável, justamente porque comprada ao preço dos juros que representam a contra-face do mesmo risco que se queria evitar. Muito menos ainda se cogita de saber até que ponto o crescimento da economia, condenado a permanecer no porão dos nossos desejos, não faria falta para reforçar a oferta geral de produtos, especialmente quando a economia resfolega num soluço inflacionário como agora.
Moeda forte e monetarismo sem medo são as prescrições faltantes aos dez anos do Real.


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

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