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OPINIÃO ECONÔMICA
Monetarismo sem moeda
PAULO RABELLO DE CASTRO
O soluço inflacionário das
últimas semanas -sinal
evidente de que o varejo, até mais
que os atacadistas, tentará recuperar sua margem comprimida
durante a recessão de 2003- reacendeu os medos da autoridade
monetária acerca de um repique
de preços. Hoje se conhecerá a extensão desse medo. Depois da reunião do Copom -o Comitê de
Política Monetária do Banco
Central-, ao final da tarde, saberemos qual a dosagem de juros
por eles considerada compatível
com o crescimento "tolerável" da
economia brasileira.
O alvo do Banco Central é uma
taxa de inflação anual, medida
por índice ao consumidor, que
hoje não cabe à sociedade discutir, muito menos contestar. A meta de inflação condiciona o ritmo
dos negócios e das vendas no mercado interno. Indiretamente, a remuneração do trabalho também
está condicionada de modo estreito às decisões do chamado Copom, que fixa os juros básicos, determinando o custo do financiamento das atividades produtivas
em todos os segmentos dependentes de algum crédito bancário.
O Brasil é um país de escasso
crédito para a produção e o comércio. Tem menos da metade da
base de crédito considerada plausível para o andamento normal
da produção e do comércio, que
seria da ordem de 50% a 60% do
PIB. O crédito é dominado pelo
giro da dívida pública. O Banco
Central controla o crédito rigidamente para atrair recursos para
seu próprio mercado de papéis de
dívida. Daí ser tão estreita a dependência dos segmentos produtivos à escassa fonte de liquidez.
Tão escassa quanto incerta. Tão
incerta quanto dominadora e
pervasiva, já que é a torneira emperrada do Banco Central a origem quase exclusiva das sístoles e
diástoles do processo produtivo.
Desde o advento da moeda real,
nos últimos dez anos, a política
monetária ganhou tamanho espaço que já não se ouve falar em
crescimento econômico como alvo ou meta de política pública.
Ainda no fim de semana, o ex-presidente FHC lembrava que
"... os governos, em geral, são reféns do mercado, principalmente
do mercado financeiro (...) o crescimento depende mais do mercado do que de políticas públicas..."
("O Globo", 15/2, pág. 10). A afirmação tampouco destoa da aparente convicção do governo Lula,
que até agora não apresentou um
planejamento amparado em metas quantitativas de crescimento
da produção. O espetáculo do
crescimento será o que for possível: não tem hora certa para começar nem programação de artistas. Depende do humor dos trapezistas e da boa vontade do leão.
Em compensação, a política
monetária, apoiada sobretudo no
torniquete dos juros, tem calendário rígido e execução rigorosamente acompanhada pelo mercado financeiro, cuja relação umbilical com a meta inflacionária
torna frívola qualquer outra
preocupação periférica ao comportamento da taxa Selic. É uma
espécie de monetarismo do medo.
Entretanto, passados dez anos de
administração monetária com alto grau de autonomia operacional e quase total imunidade em
virtude dos poderes constituídos,
o balanço dos trabalhos do Banco
Central, embora positivo no cotejo com a altura do desafio, estaria
longe de poder ser considerado
bem concluído. A estruturação de
um padrão monetário, uma nova
moeda, enfim, é tarefa de extrema complexidade, a ponto de requerer décadas inteiras até consolidar-se de modo confiável. O Plano Real se propôs a fazer isso. O
controle da espiral inflacionária,
até então dominada por mecanismos de indexação quase diária,
representou um grande ganho
inicial para a sociedade. Contudo
a redefinição do padrão monetário parece ter parado por aí. Hoje
vivemos, numa ênfase, um monetarismo sem moeda. Fascinado
pelos êxitos iniciais da sua política de juros, o Banco Central foi
compondo, quase involuntariamente, um novo círculo de interesses em torno desse instrumento, que propiciou ganhos crescentes aos nela envolvidos pelo lado
do mercado, em desatenção e até
em detrimento de quem dela dependesse, na voz passiva, como
produtor de bens e serviços. O resultado desse desequilíbrio é inequívoco: a economia brasileira,
em nenhum período de dez anos,
no último século, cresceu tão pouco quanto entre 1994 e 2003. O ex-presidente FHC tem razão: foi
uma política de alta dependência.
O Brasil era refém da inflação até
1994. De lá para cá, passou a ser
refém dos juros, cuja conta indigesta, só no ano passado, nos custou quase R$ 150 bilhões, cerca de
10% do PIB brasileiro. Não paira
dúvida sobre a prevalência da política de juros altos e endividamento público galopante como
causa principal do estancamento
da economia doméstica.
Lula foi eleito para mudar. Mas
logo descobriu que não existe
margem de manobra possível fora da lógica circular que o próprio
mercado financeiro criou como
paradigma da estabilidade. Trata-se de uma verdade construída
a partir do medo e da repetição,
segundo a qual a estabilidade
sem progresso é um indício, uma
espécie de crisma, que marca o
bom caráter da política conservadora e a intenção reta dos dirigentes.
A bem poucos ocorre perguntar
por que essa estabilidade não é estável, justamente porque comprada ao preço dos juros que representam a contra-face do mesmo
risco que se queria evitar. Muito
menos ainda se cogita de saber
até que ponto o crescimento da
economia, condenado a permanecer no porão dos nossos desejos,
não faria falta para reforçar a
oferta geral de produtos, especialmente quando a economia resfolega num soluço inflacionário como agora.
Moeda forte e monetarismo
sem medo são as prescrições faltantes aos dez anos do Real.
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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