São Paulo, domingo, 18 de fevereiro de 2007

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LUCIANO COUTINHO

Soberania ou ioiô?


Mais cedo ou mais tarde, o atual ciclo de crescimento será cortado; o novo ajuste será amargo, com recessão


NOS ANOS 70 a América Latina enveredou em um ciclo de endividamento externo graças à folgada liquidez mundial (resultante do déficit externo e da frouxa política monetária dos Estados Unidos). O Brasil aventurou-se a crescer, mesmo depois da crise de preços do petróleo de 1973, à custa de crescente endividamento. De 1979 para 1980, porém, a política monetária americana foi brutalmente arrochada, para conter pressões inflacionárias e salvar o dólar de uma depreciação desordenada. As taxas de juros do Fed subiram de 8% para 20% ao ano em pouco mais de dez meses, provocando violento choque sobre a liquidez global.
Esse choque pegou pesado na América Latina e no Brasil: moratórias, maxidepreciações, deterioração fiscal, crescimento fraco e irregular e tendência generalizada à hiperinflação. Os anos 80 foram infernais, com uma sucessão de planos heterodoxos fracassados sob a pressão de crises cambiais.
No início dos anos 90 o vento virou outra vez. Um afrouxamento da política monetária dos EUA providenciou, novamente, liquidez farta para os países da região. Ingressos abundantes de capitais em busca de privatizações e de taxas de juros elevadas viabilizaram experiências de estabilização ancoradas em taxas de câmbio fixas ou administradas por controles dos BCs. A hiperinflação foi domada, mas à custa de crescente precariedade cambial e de um novo ciclo de endividamento externo e interno. No fim da década de 90, várias crises cambiais na periferia viriam abalar as estabilizações sul-americanas. Não é preciso lembrar as grandes oscilações negativas que sofremos em 99 e 2001/2, nem a brutal crise argentina com o colapso do seu sistema cambial no fim de 2001. A alta vulnerabilidade ante os ciclos de liquidez mundial transformou as economias latino-americanas em verdadeiros ioiôs -ao sabor dos mercados financeiros-, degradando a zero a soberania nacional sobre as políticas macroeconômicas.
De 2003 para cá, porém, uma nova onda de mudanças globais reverteu e praticamente sanou essa vulnerabilidade. Mais além da enorme liquidez mundial (especialmente após os atentados de 2001 nos EUA), um ciclo de preços superfavorável beneficiou as exportações sul-americanas. O Brasil fortaleceu-se e acumulou reservas (hoje de US$ 94 bilhões) mas, infelizmente, o BC permitiu, nos dois últimos anos, a apreciação exagerada da taxa de câmbio -o que tende a limitar no futuro próximo o processo de robustecimento cambial. Há, ainda, a herança de grande fragilidade financeira e fiscal do Estado (dívida interna curta, cara e indexada); fragilidade que precisaria ser enfrentada com urgência para assegurar um raio de manobra à política macroeconômica.
A urgência decorre do risco de interrupção, mais cedo ou mais tarde, do atual ciclo mundial liderado pelo crescimento deficitário dos EUA em simbiose com a Ásia (China especialmente). Quando o novo ajuste vier será amargo, com inevitável depreciação do dólar e recessão mundial. Somente países com relativa autonomia macroeconômica (robustez cambial e solidez fiscal) conseguirão suavizar o sofrimento através de política anticíclica. É preciso reorientar logo a nossa macroeconomia para chegar lá -ou continuaremos vítimas do efeito ioiô.


LUCIANO COUTINHO , 60, é consultor e professor convidado do IE/Unicamp.


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