São Paulo, terça-feira, 18 de maio de 2004

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COMÉRCIO MUNDIAL

Negociadores do Sul não gostaram do sermão adotado pela UE

Paternalismo europeu irrita latinos

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA, EM BRUXELAS

O documento final da Cúpula União Européia/América Latina-Caribe só ficará definido às vésperas da reunião, marcada para o dia 28, no México, porque os países latino-americanos ficaram irritados com o que consideram paternalismo europeu, ao tentar "ensinar aos pobres como fazer para terem sociedades mais igualitárias", conforme a Folha ouviu de um dos negociadores.
O texto, de cerca de dez páginas, será assinado por um número recorde de chefes de Estado/governo em reuniões entre os dois lados: 58, sendo 25 europeus e 33 latino-americanos e caribenhos, entre eles o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva.
O encontro de Guadalajara será o primeiro de que tomarão parte os governantes dos dez novos países europeus, que entraram para o conglomerado no dia 1º.
A irritação dos latino-americanos e caribenhos nasceu com um documento do mês passado, no qual a Comissão Européia, o braço executivo do conglomerado, comunica quais são os seus objetivos para a Cúpula tanto ao Parlamento Europeu como à Comissão (a instância máxima, formada pelos chefes de governo).

Crítica social
O texto faz duras críticas à situação social da América Latina, começando por citar conhecidos números sobre a pobreza na região, como os 227 milhões de pobres ou 44,4% da população. "Essa porcentagem é mais elevada que a registrada na Europa Oriental, Oriente Médio e Norte da África, embora a renda per capita da América Latina seja maior do que a dessas regiões", comenta a Comissão.
Os negociadores do Sul não negam que a região tem imensos problemas, mas gostariam que a linguagem adotada fosse outra.
Ainda mais que o receituário sugerido pelos europeus tem o mesmo sentido de sermão.
Exemplo 1 - "É urgente, portanto, adotar políticas sólidas e eficazes destinadas a aumentar as possibilidades de acesso a serviços sanitários, educação e habitação de qualidade, melhorar os sistemas de proteção social e aplicar medidas de emprego tendentes a reduzir a segregação e a discriminação nos mercados de trabalho."
Exemplo 2 - "As desigualdades [sociais] pronunciadas estão estreitamente vinculadas a políticas fiscais injustas e ineficientes."
Os latino-americanos não reclamam apenas do tom de sermão usado pelos europeus, mas do fato de que não fazem menção aos constrangimentos internacionais que limitam a ação dos governos latino-americanos e, às vezes, desestabilizam suas economias.

Reforma da ONU
Esse tipo de linguagem e de lacuna ressurgiu nas discussões entre diplomatas dos dois lados para dar forma final ao documento de Guadalajara. Conseqüência: o esboço ficou pronto mas com muitos trechos entre colchetes, a maneira usada para indicar que não há acordo.
Agora, o rascunho está sendo traduzido para ser remetido diretamente a Guadalajara, para novas rodadas de negociação, a partir de segunda-feira, para que o documento fique pronto para a assinatura dos governantes, no dia 28.
Além da "coesão social", há divergências também no segundo ponto-chave do documento, que é a defesa do multilateralismo.
Como é óbvio, as duas partes estão de acordo em pôr toda a ênfase no papel que as Nações Unidas devem desempenhar em qualquer situação global, mas há divergências sobre a linguagem a empregar no capítulo que fala da reforma da instituição.
O Brasil, candidato assumido a um lugar no Conselho de Segurança, o coração do sistema Nações Unidas, achou muito fraca a linguagem a esse respeito.

Obstáculos superáveis
Os negociadores ouvidos pela Folha não vêem obstáculos insanáveis para fechar o texto, mas deixam claro que um acordo não deve tornar o documento excessivamente anódino. "É preciso dizer algo que represente uma efetiva mensagem política tanto sobre coesão social como sobre multilateralismo", diz um deles.
A única parte já fechada é a que trata do patrimônio birregional, ou mais exatamente da cooperação entre os dois blocos, que de fato tem se tornado mais e mais importante. Nesse ponto, os europeus reconhecem os avanços, no documento da Comissão ao Parlamento e ao Conselho:
"A União Européia, segundo sócio comercial em importância da América Latina, reforçou gradualmente seus vínculos econômicos e comerciais com essa região, de tal modo que o intercâmbio comercial mais que duplicou no período entre 1990 e 2002", aumentando de 43,8 bilhões para 111,2 bilhões.
O documento de Guadalajara fará menção também à expectativa de que o acordo comercial entre o Mercosul e a União Européia, que está sendo finalizado, possa ser assinado o mais breve possível (em princípio, outubro é a data estabelecida).


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