São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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EM TRANSE

Ex-diretor do FMI aponta irresponsabilidade fiscal no primeiro mandato de FHC e isenta candidatos de culpa pela crise

Inflação atenua dívida de FHC, diz Mussa

MARCIO AITH
DE WASHINGTON

A inflação, inimiga número um do Plano Real, pode transformar-se na solução mais viável para parcela da dívida pública brasileira. Pelo menos na opinião de Michael Mussa, ex-diretor do Departamento de Pesquisa do FMI (Fundo Monetário Internacional) e atual membro do IIE (Instituto de Economia Internacional), um dos principais centros de pesquisa de Washington.
Mussa diferencia a crise brasileira da argentina -"os perfis das duas são diferentes"- e conclui que a saída mais atraente para suavizar o passivo em reais do governo é deixar os preços subirem para um patamar próximo ao dos juros. "Haveria uma corrosão dessa parcela da dívida sem que haja uma reestruturação formal."
Segundo o economista, a dívida pública brasileira é produto do "exercício máximo de irresponsabilidade fiscal" do governo Fernando Henrique Cardoso entre 1994 e 1998. Os atuais candidatos não poderiam ser responsabilizados pela tensão nos mercados.
"O desempenho fiscal do primeiro governo [Fernando Henrique] Cardoso foi péssimo. Teve déficits enormes e queimou uma montanha de receitas da privatização, talvez US$ 40 bilhões ou US$ 50 bilhões. Cardoso garantiu um segundo mandato à custa da elevação da dívida do setor público e da queima de receitas da privatização." Mussa falou à Folha na sede do IIE.

Folha - Após o anúncio do empréstimo do FMI, o real caiu mais e o risco Brasil manteve-se num patamar elevado. O acordo fracassou? É cedo para julgar?
Michael Mussa -
Os mercados concluíram que os fundamentos do problema não mudaram. O superávit fiscal primário tem sido de 3,25% a 3,75% do PIB desde 1999 e, apesar disso, a relação dívida/PIB continuou a crescer. Nesse aspecto, o pacote trouxe problemas. Ele serviu como uma declaração do governo atual de que o superávit de 3,75% é o maior esforço fiscal que pode ser feito agora e no futuro. Há um reconhecimento de que a relação dívida/ PIB começaria a se estabilizar ou até a cair se os juros reais sobre a dívida forem de 7%, 8% ou 9%, mesmo se a economia tiver um crescimento moderado. Mas com juros reais de 10% ou mais fica virtualmente impossível elevar esse superávit a um nível suficiente para estabilizar essa relação.

Folha - O sr. esteve numa posição de destaque no FMI na última década, quando as dívidas pública e privada brasileira cresceram muito...
Mussa -
Sou muito crítico em relação aos cinco primeiros anos do governo FHC e do ministro Pedro Malan (Fazenda). Foram um exercício máximo de irresponsabilidade fiscal. Mas desde 1999 eles têm sido cuidadosos. Comprometeram-se apenas com metas fiscais que puderam cumprir. E foram responsáveis em cumprir as promessas que fizeram.

Folha - Pode-se, então, dizer que foram cinco anos irresponsáveis contra três anos de maturidade?
Mussa -
Pode-se discutir se as metas de superávit primário nos últimos três anos foram suficientes para compensar os anos anteriores ou não. Mas, pelo menos, não foram metas que eles prometeram e não cumpriram. Acho que, na última negociação com o FMI, o governo disse que não havia condições de cumprir um superávit acima de 3,75% e o Fundo aceitou, considerando que o presente governo só tem mais alguns meses de duração.

Folha - O sr. acredita que a raiz da atual turbulência é política?
Mussa -
Não. Independentemente do que eu pense a respeito dos candidatos e do que declarem o presidente FHC, o secretário [do Tesouro dos EUA, Paul] O'Neill ou [o presidente do BC brasileiro, Armínio] Fraga, os candidatos não são responsáveis pelos atuais problemas. A crise atual é consequência das políticas executadas pelo governo FHC. É absurda a noção de que a política do governo tem sido espetacular e que, não fosse por candidatos malucos, a situação estaria calma.

Folha - Armínio está demorando para buscar um compromisso dos bancos internacionais de manter linhas de crédito para o Brasil?
Mussa -
Em 1999, o governo brasileiro fez esse esforço. Muitos bancos se comprometeram, voluntariamente, a manter sua exposição no Brasil, desde que seus colegas fizessem o mesmo. Foi criado um sistema de monitoramento para verificar se os bancos estavam cumprindo a promessa.
O fato de o governo estar no fim torna muito difícil levar os bancos a se comprometerem com qualquer coisa. Em 1999, FHC tinha acabado de se reeleger. Além disso, Fraga teme provocar uma redução ainda maior das linhas, ao dar início a essas conversas. Se os bancos começarem a avaliar que serão pressionados a manter sua exposição no Brasil, irão acelerar o corte das linhas antes mesmo de as negociações começarem. Se forem levados a congelar um nível de empréstimos ao país, garantirão ao menos que esse volume seja congelado num patamar baixo.

Folha - Em trabalho recente sobre a Argentina, o sr. diz que o FMI fracassou ao não exigir do presidente Carlos Menem um esforço fiscal entre 1996 e 1998, quando o país crescia e esbanjava receitas de privatização. O FMI, o sr. diz, temia "constranger" autoridades argentinas num momento em que Menem era festejado em todo o mundo. Não aconteceu algo similar nos primeiros anos do governo FHC?
Mussa -
Havia uma diferença importante. A economia argentina funcionou sob a supervisão de programas do FMI durante quase toda a década de 90. O programa do Fundo com o Brasil começou em outubro/novembro de 1998. O desempenho fiscal do primeiro mandato de Cardoso foi péssimo. Ele garantiu um segundo mandato à custa da elevação da dívida pública e da queima de receitas da privatização. O desempenho fiscal do Brasil entre 1994 e 1998 foi muito pior do que o da Argentina no mesmo período, mas o FMI não assinou embaixo porque não havia programa com o país.

Folha - Quando o câmbio brasileiro tornou-se flexível, em 1999, imaginava-se que, aliado a um esforço fiscal, a economia do país fosse capaz de suportar choques...
Mussa -
O Brasil foi capaz de sair do Real sem uma catástrofe. A economia recuperou-se bem melhor do que esperava, após a desvalorização. Mas os problemas continuam. Câmbio flexível não é uma panacéia para os mercados emergentes. Governos e empresas desses países fazem grande parte de seus negócios em moeda estrangeira e sempre poderão ter uma crise financeira externa.

Folha - Na prática, não basta liberar o câmbio quando sua dívida continua atrelada ao dólar...
Mussa -
Sim, e esse problema ocorre mesmo se a dívida é inteira doméstica, mas atrelada ao dólar. Os BCs dos países emergentes não podem expandir a liquidez, imprimir dólares.

Folha- O sr. acha possível o Brasil reestruturar somente sua dívida doméstica, sem alterar prazos e valores de sua dívida externa?
Mussa -
A situação brasileira é muito diferente da argentina. No Brasil, a dívida em dólar é uma parte muito pequena do total. Então, se o câmbio flutua, aumenta o valor em real da dívida doméstica, que flutua com o dólar. Nesse processo, pode haver calotes privados, mas não é como na Argentina, onde, devido à quebra da conversibilidade, é virtualmente impossível manter o sistema bancário vivo e manter a santidade dos contratos. É preciso reconhecer que, no Brasil, ainda há um volume significativo da dívida doméstica denominada em reais e desvinculada do dólar. Ainda que o prazo dessa parcela da dívida seja curto, ele não é zero. Portanto o governo estaria disposto a tolerar uma inflação maior para corroer uma parte da dívida.

Folha - Como ficaria o Plano Real com uma inflação crescente?
Mussa -
O Plano Real já está morto. Foi substituído por um regime de metas de inflação. Até agora, a inflação tem sido mantida em níveis baixos. Mas a taxa de juros reais sobre a dívida em moeda doméstica é muito alta. A taxa Selic está em 18% e a inflação, em cerca de 8% -a taxa de juros reais está acima de 10%. Quando veio a pressão do mercado, o BC rejeitou o aumento dos juros. Mas não há alternativa: se os juros não forem elevados, a taxa de inflação pode subir para 10%, 15% ou 20%. A dívida em reais pode ser corroída por uma inflação maior.

Folha - A a inflação pode tornar-se a salvação da dívida brasileira?
Mussa -
Sim. É uma opção viável.

Folha - O que fazer com a dívida atrelada à variação cambial?
Mussa -
Essa dívida tem uma duração maior e pode esperar um pouco mais. Para esse tipo de dívida, existem as opções de quebrar os contratos ou obrigar os credores a renová-los. Mas será difícil encontrar uma forma de adotar essas medidas sem que o sistema bancário fique insolvente. Em 1999, os bancos chegaram a ganhar dinheiro porque o governo vendera a eles títulos em dólar. Eles estavam mais do que cobertos em sua exposição em dólar. Agora a situação é diferente. O governo tem um problema de sustentação de sua dívida e talvez queira taxar parte do capital dos bancos. Mas não pode levá-los à insolvência. O equilíbrio é difícil.

Folha - Se o Brasil optar por uma inflação crescente para corroer o valor da dívida doméstica, o sr. não acha que haveria uma fuga ainda maior de capital do país?
Mussa -
Sim. É por isso que a questão de controles de capital pode vir à tona. Tem havido uma grande perda de reservas. Uma alternativa seria impor controles. O Brasil já utilizou esse instrumento antes, mas, obviamente, há um grande desejo de evitar isso agora.


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