São Paulo, domingo, 18 de agosto de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

FMI não basta para deter a crise

LUCIANO COUTINHO

As contas cambiais brasileiras persistem em rota desequilibrada e potencialmente explosiva, apesar do megapacote de US$ 30 bilhões do acordo providenciado em tempo recorde pelo FMI (Fundo Monetário Internacional). A razão é que o volume de recursos a ser desembolsado neste segundo semestre é pequeno (US$ 6 bilhões) e, de outro lado, o programa per se não conseguiu induzir uma reversão do arrocho de crédito (e financiamento) externo ao qual o Brasil está submetido.
A decisão dos bancos internacionais de reduzir o exposure-Brasil (o que significa cortar as linhas de crédito e liquidar posições em títulos brasileiros) é o verdadeiro fulcro da crise. Essa situação foi provocada, imprevidentemente, por um endurecimento inoportuno dos critérios de classificação do risco-soberano das economias emergentes, determinado recentemente pelos bancos centrais e pelas instituições de regulação bancária dos países desenvolvidos (provocando uma revoada -inapelável- desses créditos e papéis por parte da banca internacional). Esse movimento de fuga e liquidação de posições veio tomando corpo nos últimos dois meses e praticamente jogou a economia brasileira nas cordas.
Entre rolagens de dívidas e dinheiro novo, o Brasil precisa, em média, de US$ 4 bilhões por mês. Não há cobertura, nos próximos seis meses, para essa necessidade de financiamento. Há um buraco difícil de estimar (provavelmente entre US$ 12 bilhões e US$ 14 bilhões) que, se for integralmente coberto pelas reservas do Banco Central, nos deixará com um nível de liquidez muito baixo e vulnerável. Isso não é aceitável. Nessas contas, obviamente, não está considerada a hipótese de uma corrida maciça ao dólar por parte de empresas e investidores locais e de subsidiárias estrangeiras. Há indícios apenas do início de um movimento extraordinário de saída de capitais pelas contas CC-5 e de aceleração da remessa de lucros e dividendos ao exterior. Esse movimento não pode agravar-se sob pena de provocar um colapso imediato da solvência cambial. Para evitar isso, é imprescindível que surja o quanto antes uma mudança de atitude por parte dos bancos internacionais.
Essa mudança não ocorrerá espontaneamente, pois todos os bancos sabem que o movimento de fuga do Brasil se generalizou entre os seus pares. Assim, se qualquer um deles resolvesse voltar a dar crédito ao país, correria o risco de financiar a saída de seus concorrentes. Por isso a única forma de retomar o crédito é por meio de uma iniciativa coordenada por uma autoridade pública, no caso o Fed (Federal Reserve) e/ou o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos. Essa coordenação precisaria ainda incluir os bancos e as autoridades européias e poderia funcionar para o restabelecimento das linhas comerciais, mais concentradas num número restrito de bancos. Aliás, é irracional a retirada dessas linhas a partir do "default" da Argentina, pois, no caso brasileiro, elas não oferecem risco relevante e são ademais bastante rentáveis para os credores. Já no caso da renovação dos bônus brasileiros, públicos e privados, o problema de coordenação é bem mais complicado, dado que seus detentores são fundos e investidores bastante pulverizados.
Em vez de pressionar os candidatos à Presidência -que, bem ou mal, já sinalizaram a aceitação do acordo com o FMI-, o governo brasileiro e o Banco Central deveriam empenhar-se, com energia e veemência, em obter das autoridades monetárias do G-3 (Banco de Compensações Internacionais -BIS-, Fed e bancos centrais europeus) uma revisão da recente reclassificação do risco dos papéis das economias emergentes, que obrigou os bancos a detonarem os títulos brasileiros. Sem que haja, imediatamente, uma mudança desses critérios, será vã a tentativa de coordenar os bancos e mercados. Além disso, o governo deveria, enfim, tomar iniciativas efetivas no campo tributário e de crédito para financiar, em reais, os processos de exportação.
Algumas lições precisam ser extraídas desse episódio maligno: 1) o Banco Central e a equipe do Ministério da Fazenda não perceberam e não souberam antecipar os efeitos negativos do endurecimento dos critérios de regulação de riscos por parte das autoridades monetárias dos países desenvolvidos; 2) fica, uma vez mais, explicitado o custo da vulnerabilidade das nossas contas externas, fato que o atual governo e a equipe econômica negligenciaram em corrigir nos últimos anos, confiando nos investimentos diretos e no efeito espontâneo da flutuação da taxa de câmbio sobre a balança comercial; 3) fica também visível o quão perigoso para o país é depender de bancos estrangeiros, sujeitos a regulamentações, motivações e percepções de risco que não levam em conta as nossas reais potencialidades.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).

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