|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ARTIGO/IMPOSTOS
A reforma tributária de FHC e o colapso fiscal
A sonegação fiscal, em países emergentes, é a maior distorção produzida pelos impostos
|
Foi feita, de forma silenciosa, talvez a maior reforma tributária da renda de pessoas jurídicas da história brasileira
|
EVERARDO MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Poucos temas frequentam
com tanta assiduidade a
agenda política brasileira contemporânea quanto a reforma tributária. De igual modo, poucas
matérias são tratadas com tanta
imprecisão e equívocos quanto
ela.
Reforma tributária parece, em
certos momentos, um desaguadouro para o qual convergem demandas por simplificação tributária, conflitos intrafederativos,
propostas de transposição de soluções adotadas em outros países,
reclamos por uma mais efetiva
justiça distributiva, exercícios de
experimentalismo tributário, indignações pela assimetria entre o
pagamento de impostos e a realização do gasto público, queixas
contra o tamanho da carga tributária, dissimuladas tentativas de
facilitar a evasão e a elisão fiscais,
propósitos sinceros de corrigir
desigualdades regionais, de estimular as exportações, de robustecer a competitividade da economia nacional etc. etc. etc. Nesse
contexto, com raras e honrosas
exceções, abundam proposições
conflituosas, pouco ou mal elaboradas, sem nenhum compromisso com o indispensável realismo
fiscal e amparadas tão-somente
em exercícios abstratos que passam ao largo de simulações com
dados efetivos.
Ficções fiscais
É verdade que só recentemente
se tornaram disponíveis informações tributárias confiáveis, seja
porque o processo de inflação
crônica que precedeu a adoção do
Plano Real convertia em ficções
numéricas as escassas estatísticas
tributárias, seja porque as declarações de impostos (mormente os
federais) eram pouco informativas e processadas em ritmo extremamente lento. Essa circunstância representava uma extraordinária restrição à realização de pesquisas e à elaboração de propostas na área tributária.
Algumas questões que informam o debate tributário merecem atenção especial: o tamanho
da carga tributária, a demanda
por isonomia tributária entre
produção doméstica e importações e distorções econômicas geradas por tributos do sistema tributário brasileiro.
Crescem gastos e impostos
É inequívoco que, nos anos recentes, houve um aumento significativo na carga tributária brasileira (de algo ao redor de 24%, no
início da década passada, para
cerca de 33% em 2000). Pondere-se que parte desse aumento é atribuível à cobrança de tributos passados, com exigibilidade suspensa em virtude de ações judiciais
ou simplesmente sonegados pela
inércia da máquina arrecadadora,
à adoção de instrumentos mais
eficazes de fiscalização e à eliminação de brechas fiscais. Entretanto, essa explicação não é suficiente para esclarecer a elevação
da carga tributária. Houve, sem
lugar a dúvidas, aumento de alíquotas e alargamento das bases de
cálculo.
Resta apontar a verdadeira motivação do crescimento da carga
tributária: expansão significativa
do gasto público. A carga tributária cresce não por movimentos
autônomos de impostos, mas por
exigências decorrentes do expansionismo da despesa pública. É
simplismo focar o tema apenas
pela ótica tributária. A matéria
deve ser remetida ao domínio da
política fiscal: a uma visão integrada de arrecadação de tributos
e realização do gasto público.
Colapso fiscal
No caso específico brasileiro, as
explicações para expansão do
gasto público apontam na direção
das políticas monetária e cambial,
das políticas sociais vinculadas ao
modelo de Estado sancionado na
Constituição, das políticas públicas concorrentes associadas a um
imperfeito e contraditório desenho de federalismo fiscal etc.
Aqui não se faz um juízo de valor
sobre esses gastos, mas apenas
um registro sobre os riscos do colapso fiscal, com inspiração demagógica, que resultaria de uma
política de redução de carga tributária que desconsidere uma reformulação profunda do gasto público. Ainda que óbvia, essa conduta prudencial é convenientemente omitida nas discussões sobre carga tributária.
Críticos do sistema tributário
brasileiro assinalam o tratamento
oneroso dispensado pelas contribuições sociais à produção doméstica vis-à-vis sua não incidência nas importações. Realmente, a
importação não constitui fato gerador do PIS e da Cofins, ao contrário do que ocorre em relação à
receita bruta das empresas brasileiras. Tal descompasso, é claro,
compromete francamente a desejada isonomia tributária, privilegiando as importações.
À luz dessa evidência é que o
Executivo encaminhou ao Congresso Nacional, em agosto de
2000, proposta de emenda constitucional que prevê a incidência
das contribuições sociais nas importações e, por consequência,
elimina a desigualdade de tratamento tributário. Infelizmente, o
projeto ainda não conseguiu
prosperar, em virtude de inesperadas reações políticas, precisamente daqueles setores da sociedade que perfilhavam a tese de
isonomia. Isso serve para demonstrar que o debate sobre matéria tributária pode tomar rumos
imprevisíveis, ditados por razões
fortuitas ou motivos insondáveis.
O desvio da sonegação
A literatura de finanças públicas
é farta em exemplos de distorções
econômicas provocadas por impostos. O que não se ressalta, contudo, é que esses exemplos presumem contexto em que inexiste ou
é pouco relevante a sonegação.
Essa, entretanto, não é a realidade
dos países emergentes. Nesses
países, parodiando conhecido
aforismo, pode-se dizer que feito
o imposto, feita a sonegação.
Ao contrário das distorções econômicas decorrentes da adoção
de certos impostos, são raros os
registros, na literatura especializada, dos efeitos perversos da sonegação. Vejamos, todavia, alguns exemplos. Haverá alguma
distorção econômica maior, na
tributação dos cigarros, do que o
descaminho nas exportações que,
no Brasil, estabelece a competição
entre produtos com diferencial de
preços da orcem de 65%? Pode-se
imaginar distorção de mercado
maior do que a que foi vista, recentemente, no setor de combustíveis, por força da sonegação de
impostos? Existirá forma melhor
de levar à ruína a indústria brasileira que submetê-la à competição com o subfaturamento ou o
descaminho nas importações?
A sonegação, dirão alguns, se
enfrenta com fiscalização e medidas punitivas. Em países emergentes, essa é uma verdade parcial. Não bastam fiscalização e
medidas punitivas, é indispensável que a concepção do imposto já
previna, tanto quanto possível,
sua própria sonegação. Impostos
complexos, por exemplo, são terreno fértil para a evasão fiscal, para não falar na elisão. A sonegação, nessas circunstâncias, deve
merecer tratamento preventivo,
antes que curativo.
Ao fim e ao cabo, o que se pretende afirmar é que a sonegação,
em países emergentes, é a maior
das distorções econômicas produzidas por impostos, de longe
superior a qualquer outra. Por
conseguinte, a providência primeira que se deve ter, no exame
dos sistemas tributários desses
países, é o potencial de sonegação
presente na própria concepção do
imposto, confrontado com os instrumentos à disposição dos órgãos de fiscalização e a tradição
tributária do país. Impostos que
não funcionam são incapazes de
prover recursos fiscais e geram
enormes desequilíbrios competitivos. Enfim, não servem.
Reforma tributária
Retomemos o tema da reforma
tributária. É necessária a reforma
tributária? Já foi feita? Deve ser
feita? É impossível fazê-la? O que
fazer? Como fazer? Quando fazer?
São todas perguntas razoáveis.
Lembremos que as bases tributárias clássicas são renda, patrimônio e consumo. Uma reforma
tributária, quando requerida, deve especificar seus objetivos em
relação a cada uma dessas bases.
Em 1995, uma missão, constituída pelo Departamento de Assuntos Fiscais do Fundo Monetário Internacional e integrada por
especialistas de notório reconhecimento internacional, ao examinar o IRPJ brasileiro, assinalou de
forma concisa e peremptória: "...
o Imposto de Renda das Pessoas
Jurídicas, no Brasil, é demasiado
complexo...". Nada tão objetivamente verdadeiro. Esses mesmos
especialistas, quatro anos depois,
em outro trabalho, afirmavam:
"...depois de uma surpreendentemente bem-sucedida reforma na
tributação do Imposto de Renda
das Pessoas Jurídicas...". Talvez,
também, verdadeiro.
O que se fez no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, em matéria de reforma tributária da renda? Eliminou-se a
correção monetária dos balanços
(certamente a melhor explicação
da complexidade do imposto de
renda das pessoas jurídicas). Foram reduzidas as alíquotas marginais. Vinculou-se a compensação
de prejuízos à realização de lucros. Uniformizou-se o tratamento tributário entre empresas financeiras e não-financeiras (inclusive em relação à Cofins, ao PIS
e à Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido). Integrou-se o
IRPJ com o IRPF (mediante isenção dos lucros e dividendos distribuídos). Estabeleceu-se a tributação em bases mundiais e dos preços de transferência. Fixou-se, de
forma inédita em todo mundo,
um tratamento discriminatório
em relação aos paraísos fiscais.
Instituiu-se o conceito de juros remuneratórios do capital próprio
com tributação equiparada ao de
juros de empréstimos. Adotou-se
um regime de tributação das aplicações no mercado financeiro
equivalente ao fixado para os resultados oriundos dos investimentos nas atividades produtivas. Ampliaram-se as possibilidades de opção pelo regime de tributação do lucro presumido. Instituiu-se o Simples (regime especial de tributação integral das pequenas e microempresas). Tudo
em nome de um projeto de reforma gradual e permanente que se
compadece com a racionalidade,
a coerência econômica, a simplicidade, a neutralidade tributária.
Fez-se, de forma silenciosa, provavelmente, a maior reforma tributária da renda das pessoas jurídicas da história brasileira, conduzindo o país à condição de paradigma internacional.
Tecnologia tributária
Mas a reforma não se esgotou
em mudança da legislação. Envolveu uma profunda mudança nas
tecnologias utilizadas para o cumprimento das obrigações tributárias (o Brasil tornou-se não apenas pioneiro, mas líder internacional inconteste em matéria de
utilização da internet nas relações
entre o fisco e o contribuinte), e o
aperfeiçoamento dos instrumentos de fiscalização (expansão e
qualificação dos profissionais e
utilização de tecnologias sofisticadas). Os resultados foram compensadores. A arrecadação cresceu, a sonegação caiu, melhorou a
relação entre fisco e contribuinte.
Em relação ao Imposto de Renda das Pessoas Físicas, as mudanças foram todas orientadas no
sentido de racionalizar e simplificar a declaração, além de prevenir
a evasão e tornar a legislação previsível. O livro "Tributação de
Renda no Brasil Pós-Real" pretende registrar as mudanças recentes no Imposto de Renda.
Contar motivações, expor idéias,
relatar resultados. Falar pela voz
dos que fizeram -obra coletiva
dos que integram a Secretaria da
Receita Federal, desde os que concebem aos que executam. Falar,
também, pela voz dos que ouviram -advogados, economistas,
contadores e tributaristas, cuja
avaliação livre é incorporada a esse livro sob a forma de comentários. Tudo para que se saiba o que
é (e o que não é). Para que desse
confronto honesto possa o leitor
fazer seu juízo, o legislador aperfeiçoar ou mudar, e o Estado servir melhor ao cidadão.
É o fim da história, em matéria
de reforma tributária? Não.
Fez-se algo em relação à tributação do patrimônio? Tanto quanto
necessário, na proporção exata da
importância dessa base tributária
em matéria de arrecadação, em
qualquer outro país. Ao menos,
na área federal, as alterações no
Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) aproximaram-no mais em relação aos seus
objetivos extrafiscais (uso compatível com a política ambiental, punição da propriedade improdutiva, restrições ao latifúndio).
O problema do ICMS
E quanto à tributação do consumo? Pouco se fez. Desde o começo, há um erro. Pensou-se que o
ICM, na década de 60, seria um
sucedâneo do IVC e, portanto,
um imposto de titularidade estadual. Não deveria ser, mas foi. Temos, a partir de então, um enorme problema. Passamos a ser, hoje, a única exceção, em todo mundo, que dispõe de imposto sobre o
consumo, em regime de valor
agregado, cuja titularidade é cometida a uma entidade subnacional -no caso, os Estados.
As consequências são dramáticas: como conciliar a política nacional de exportações com os interesses da arrecadação estadual?
Como efetivar o princípio do destino nas operações interestaduais?
Como uniformizar a legislação no
âmbito nacional? como assegurar
a uniformidade de alíquotas por
produtos ou classes de produtos?
Como prevenir a guerra fiscal?
A solução para tudo isso é óbvia: instituição de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) federal. Óbvia, entretanto inviável,
porque reclama a refundação do
federalismo brasileiro, com exigências políticas insuperáveis.
Conforta-nos admitir a possibilidade de mudanças simples, conquanto importantes: unificação
das alíquotas, regulamento único,
eliminação da guerra fiscal mediante vedação de incentivos fiscais de qualquer gênero. Esse é o
escopo de proposta de emenda
constitucional encaminhada, em
junho de 2001, ao Congresso. Por
ora, nada se sabe de seu destino.
Esse, contudo, é outro capítulo
-de outro livro, talvez.
Everardo Maciel é secretário da Receita
Federal. O texto acima é a apresentação
do livro "Tributação de Renda no Brasil
Pós-Real" (vários autores), que será lançado em Brasília no dia 20 de novembro,
na abertura de um seminário sobre política tributária que irá marcar o aniversário de 32 anos da Receita.
Texto Anterior: Mercados e serviços: Metade do 13º salário será paga até dia 30 Próximo Texto: Trecho Índice
|