São Paulo, domingo, 18 de novembro de 2001

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ARTIGO/IMPOSTOS

A reforma tributária de FHC e o colapso fiscal


A sonegação fiscal, em países emergentes, é a maior distorção produzida pelos impostos



Foi feita, de forma silenciosa, talvez a maior reforma tributária da renda de pessoas jurídicas da história brasileira


EVERARDO MACIEL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Poucos temas frequentam com tanta assiduidade a agenda política brasileira contemporânea quanto a reforma tributária. De igual modo, poucas matérias são tratadas com tanta imprecisão e equívocos quanto ela.
Reforma tributária parece, em certos momentos, um desaguadouro para o qual convergem demandas por simplificação tributária, conflitos intrafederativos, propostas de transposição de soluções adotadas em outros países, reclamos por uma mais efetiva justiça distributiva, exercícios de experimentalismo tributário, indignações pela assimetria entre o pagamento de impostos e a realização do gasto público, queixas contra o tamanho da carga tributária, dissimuladas tentativas de facilitar a evasão e a elisão fiscais, propósitos sinceros de corrigir desigualdades regionais, de estimular as exportações, de robustecer a competitividade da economia nacional etc. etc. etc. Nesse contexto, com raras e honrosas exceções, abundam proposições conflituosas, pouco ou mal elaboradas, sem nenhum compromisso com o indispensável realismo fiscal e amparadas tão-somente em exercícios abstratos que passam ao largo de simulações com dados efetivos.

Ficções fiscais
É verdade que só recentemente se tornaram disponíveis informações tributárias confiáveis, seja porque o processo de inflação crônica que precedeu a adoção do Plano Real convertia em ficções numéricas as escassas estatísticas tributárias, seja porque as declarações de impostos (mormente os federais) eram pouco informativas e processadas em ritmo extremamente lento. Essa circunstância representava uma extraordinária restrição à realização de pesquisas e à elaboração de propostas na área tributária.
Algumas questões que informam o debate tributário merecem atenção especial: o tamanho da carga tributária, a demanda por isonomia tributária entre produção doméstica e importações e distorções econômicas geradas por tributos do sistema tributário brasileiro.

Crescem gastos e impostos
É inequívoco que, nos anos recentes, houve um aumento significativo na carga tributária brasileira (de algo ao redor de 24%, no início da década passada, para cerca de 33% em 2000). Pondere-se que parte desse aumento é atribuível à cobrança de tributos passados, com exigibilidade suspensa em virtude de ações judiciais ou simplesmente sonegados pela inércia da máquina arrecadadora, à adoção de instrumentos mais eficazes de fiscalização e à eliminação de brechas fiscais. Entretanto, essa explicação não é suficiente para esclarecer a elevação da carga tributária. Houve, sem lugar a dúvidas, aumento de alíquotas e alargamento das bases de cálculo.
Resta apontar a verdadeira motivação do crescimento da carga tributária: expansão significativa do gasto público. A carga tributária cresce não por movimentos autônomos de impostos, mas por exigências decorrentes do expansionismo da despesa pública. É simplismo focar o tema apenas pela ótica tributária. A matéria deve ser remetida ao domínio da política fiscal: a uma visão integrada de arrecadação de tributos e realização do gasto público.

Colapso fiscal
No caso específico brasileiro, as explicações para expansão do gasto público apontam na direção das políticas monetária e cambial, das políticas sociais vinculadas ao modelo de Estado sancionado na Constituição, das políticas públicas concorrentes associadas a um imperfeito e contraditório desenho de federalismo fiscal etc. Aqui não se faz um juízo de valor sobre esses gastos, mas apenas um registro sobre os riscos do colapso fiscal, com inspiração demagógica, que resultaria de uma política de redução de carga tributária que desconsidere uma reformulação profunda do gasto público. Ainda que óbvia, essa conduta prudencial é convenientemente omitida nas discussões sobre carga tributária.
Críticos do sistema tributário brasileiro assinalam o tratamento oneroso dispensado pelas contribuições sociais à produção doméstica vis-à-vis sua não incidência nas importações. Realmente, a importação não constitui fato gerador do PIS e da Cofins, ao contrário do que ocorre em relação à receita bruta das empresas brasileiras. Tal descompasso, é claro, compromete francamente a desejada isonomia tributária, privilegiando as importações.
À luz dessa evidência é que o Executivo encaminhou ao Congresso Nacional, em agosto de 2000, proposta de emenda constitucional que prevê a incidência das contribuições sociais nas importações e, por consequência, elimina a desigualdade de tratamento tributário. Infelizmente, o projeto ainda não conseguiu prosperar, em virtude de inesperadas reações políticas, precisamente daqueles setores da sociedade que perfilhavam a tese de isonomia. Isso serve para demonstrar que o debate sobre matéria tributária pode tomar rumos imprevisíveis, ditados por razões fortuitas ou motivos insondáveis.

O desvio da sonegação
A literatura de finanças públicas é farta em exemplos de distorções econômicas provocadas por impostos. O que não se ressalta, contudo, é que esses exemplos presumem contexto em que inexiste ou é pouco relevante a sonegação. Essa, entretanto, não é a realidade dos países emergentes. Nesses países, parodiando conhecido aforismo, pode-se dizer que feito o imposto, feita a sonegação.
Ao contrário das distorções econômicas decorrentes da adoção de certos impostos, são raros os registros, na literatura especializada, dos efeitos perversos da sonegação. Vejamos, todavia, alguns exemplos. Haverá alguma distorção econômica maior, na tributação dos cigarros, do que o descaminho nas exportações que, no Brasil, estabelece a competição entre produtos com diferencial de preços da orcem de 65%? Pode-se imaginar distorção de mercado maior do que a que foi vista, recentemente, no setor de combustíveis, por força da sonegação de impostos? Existirá forma melhor de levar à ruína a indústria brasileira que submetê-la à competição com o subfaturamento ou o descaminho nas importações?
A sonegação, dirão alguns, se enfrenta com fiscalização e medidas punitivas. Em países emergentes, essa é uma verdade parcial. Não bastam fiscalização e medidas punitivas, é indispensável que a concepção do imposto já previna, tanto quanto possível, sua própria sonegação. Impostos complexos, por exemplo, são terreno fértil para a evasão fiscal, para não falar na elisão. A sonegação, nessas circunstâncias, deve merecer tratamento preventivo, antes que curativo.
Ao fim e ao cabo, o que se pretende afirmar é que a sonegação, em países emergentes, é a maior das distorções econômicas produzidas por impostos, de longe superior a qualquer outra. Por conseguinte, a providência primeira que se deve ter, no exame dos sistemas tributários desses países, é o potencial de sonegação presente na própria concepção do imposto, confrontado com os instrumentos à disposição dos órgãos de fiscalização e a tradição tributária do país. Impostos que não funcionam são incapazes de prover recursos fiscais e geram enormes desequilíbrios competitivos. Enfim, não servem.

Reforma tributária
Retomemos o tema da reforma tributária. É necessária a reforma tributária? Já foi feita? Deve ser feita? É impossível fazê-la? O que fazer? Como fazer? Quando fazer? São todas perguntas razoáveis.
Lembremos que as bases tributárias clássicas são renda, patrimônio e consumo. Uma reforma tributária, quando requerida, deve especificar seus objetivos em relação a cada uma dessas bases.
Em 1995, uma missão, constituída pelo Departamento de Assuntos Fiscais do Fundo Monetário Internacional e integrada por especialistas de notório reconhecimento internacional, ao examinar o IRPJ brasileiro, assinalou de forma concisa e peremptória: "... o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, no Brasil, é demasiado complexo...". Nada tão objetivamente verdadeiro. Esses mesmos especialistas, quatro anos depois, em outro trabalho, afirmavam: "...depois de uma surpreendentemente bem-sucedida reforma na tributação do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas...". Talvez, também, verdadeiro.
O que se fez no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, em matéria de reforma tributária da renda? Eliminou-se a correção monetária dos balanços (certamente a melhor explicação da complexidade do imposto de renda das pessoas jurídicas). Foram reduzidas as alíquotas marginais. Vinculou-se a compensação de prejuízos à realização de lucros. Uniformizou-se o tratamento tributário entre empresas financeiras e não-financeiras (inclusive em relação à Cofins, ao PIS e à Contribuição Social sobre o Lucro Líquido). Integrou-se o IRPJ com o IRPF (mediante isenção dos lucros e dividendos distribuídos). Estabeleceu-se a tributação em bases mundiais e dos preços de transferência. Fixou-se, de forma inédita em todo mundo, um tratamento discriminatório em relação aos paraísos fiscais. Instituiu-se o conceito de juros remuneratórios do capital próprio com tributação equiparada ao de juros de empréstimos. Adotou-se um regime de tributação das aplicações no mercado financeiro equivalente ao fixado para os resultados oriundos dos investimentos nas atividades produtivas. Ampliaram-se as possibilidades de opção pelo regime de tributação do lucro presumido. Instituiu-se o Simples (regime especial de tributação integral das pequenas e microempresas). Tudo em nome de um projeto de reforma gradual e permanente que se compadece com a racionalidade, a coerência econômica, a simplicidade, a neutralidade tributária.
Fez-se, de forma silenciosa, provavelmente, a maior reforma tributária da renda das pessoas jurídicas da história brasileira, conduzindo o país à condição de paradigma internacional.

Tecnologia tributária
Mas a reforma não se esgotou em mudança da legislação. Envolveu uma profunda mudança nas tecnologias utilizadas para o cumprimento das obrigações tributárias (o Brasil tornou-se não apenas pioneiro, mas líder internacional inconteste em matéria de utilização da internet nas relações entre o fisco e o contribuinte), e o aperfeiçoamento dos instrumentos de fiscalização (expansão e qualificação dos profissionais e utilização de tecnologias sofisticadas). Os resultados foram compensadores. A arrecadação cresceu, a sonegação caiu, melhorou a relação entre fisco e contribuinte.
Em relação ao Imposto de Renda das Pessoas Físicas, as mudanças foram todas orientadas no sentido de racionalizar e simplificar a declaração, além de prevenir a evasão e tornar a legislação previsível. O livro "Tributação de Renda no Brasil Pós-Real" pretende registrar as mudanças recentes no Imposto de Renda. Contar motivações, expor idéias, relatar resultados. Falar pela voz dos que fizeram -obra coletiva dos que integram a Secretaria da Receita Federal, desde os que concebem aos que executam. Falar, também, pela voz dos que ouviram -advogados, economistas, contadores e tributaristas, cuja avaliação livre é incorporada a esse livro sob a forma de comentários. Tudo para que se saiba o que é (e o que não é). Para que desse confronto honesto possa o leitor fazer seu juízo, o legislador aperfeiçoar ou mudar, e o Estado servir melhor ao cidadão.
É o fim da história, em matéria de reforma tributária? Não.
Fez-se algo em relação à tributação do patrimônio? Tanto quanto necessário, na proporção exata da importância dessa base tributária em matéria de arrecadação, em qualquer outro país. Ao menos, na área federal, as alterações no Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural (ITR) aproximaram-no mais em relação aos seus objetivos extrafiscais (uso compatível com a política ambiental, punição da propriedade improdutiva, restrições ao latifúndio).

O problema do ICMS
E quanto à tributação do consumo? Pouco se fez. Desde o começo, há um erro. Pensou-se que o ICM, na década de 60, seria um sucedâneo do IVC e, portanto, um imposto de titularidade estadual. Não deveria ser, mas foi. Temos, a partir de então, um enorme problema. Passamos a ser, hoje, a única exceção, em todo mundo, que dispõe de imposto sobre o consumo, em regime de valor agregado, cuja titularidade é cometida a uma entidade subnacional -no caso, os Estados.
As consequências são dramáticas: como conciliar a política nacional de exportações com os interesses da arrecadação estadual? Como efetivar o princípio do destino nas operações interestaduais? Como uniformizar a legislação no âmbito nacional? como assegurar a uniformidade de alíquotas por produtos ou classes de produtos? Como prevenir a guerra fiscal?
A solução para tudo isso é óbvia: instituição de um Imposto sobre Valor Agregado (IVA) federal. Óbvia, entretanto inviável, porque reclama a refundação do federalismo brasileiro, com exigências políticas insuperáveis. Conforta-nos admitir a possibilidade de mudanças simples, conquanto importantes: unificação das alíquotas, regulamento único, eliminação da guerra fiscal mediante vedação de incentivos fiscais de qualquer gênero. Esse é o escopo de proposta de emenda constitucional encaminhada, em junho de 2001, ao Congresso. Por ora, nada se sabe de seu destino. Esse, contudo, é outro capítulo -de outro livro, talvez.


Everardo Maciel é secretário da Receita Federal. O texto acima é a apresentação do livro "Tributação de Renda no Brasil Pós-Real" (vários autores), que será lançado em Brasília no dia 20 de novembro, na abertura de um seminário sobre política tributária que irá marcar o aniversário de 32 anos da Receita.


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