São Paulo, terça, 19 de janeiro de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA

Vamos cair no Real

BENJAMIN STEINBRUCH

De repente, mudou tudo. A pressão do mercado, assinalada principalmente pela sangria diária em nossas reservas, tornou-se insustentável e o jeito foi derrubar a porteira e liberar de vez o câmbio como ocorreu na manhã desta última sexta-feira.
Os temporais da semana tinham sido grandes. Houve troca de comando no Banco Central, anunciada simultaneamente com a tentativa de limitar a queda da cotação do Real. O Congresso, no meio do turbilhão, casou com o governo e aprovou quatro medidas provisórias, em votações consagradoras. Enquanto isso o mercado, aqui e lá fora, aumentava suas pressões, estimulado pelos analistas que, falando cada vez mais alto, duvidavam da nossa capacidade de enfrentar os tais ataques especulativos.
O jeito foi soltar as amarras. No câmbio livre o dólar chegou a ser negociado a R$ 1,60, mas acabou o dia na faixa de R$ 1,48, o que caracterizou uma desvalorização de aproximadamente 20% sobre os índices do início da semana. As cores da hectacombe, da chegada final ao abismo e até de um certo desespero, que enfeitavam a paisagem brasileira na noite de quinta-feira, foram subitamente trocadas por um novo arco-íris de esperança, de confiança e quase de euforia.
As Bolsas externas da Ásia e da Europa reagiram bem à liberdade cambial anunciada pelo Brasil. Aqui as ações deram saltos positivos e a Bovespa fechou o dia com 33% de alta, o segundo maior índice de sua história. Na Argentina (cuja economia é muito afetada pelas realidades brasileiras), a elevação foi de mais de 10%. E Nova York também subiu, inclusive elevando as cotações dos títulos brasileiros da dívida externa.
É bom, no entanto, irmos com calma. É preciso em primeiro lugar, refletir sobre o Plano Real e lembrar que ele não era e não é apenas uma política cambial. O fato de a nossa nova moeda ter nascido com o real valendo mais que o dólar terá contribuído para o excesso de ênfase com que alguns analistas brasileiros e internacionais consideravam o câmbio como sinônimo de Plano Real.
Sem reduzir a importância do regime cambial vigente nos primeiros quatro anos de sua implantação, esta é a hora de lembrar que o Plano Real é uma grande mudança econômica, cuja maior conquista foi e é a derrubada do processo inflacionário, a estabilidade dos preços, a devolução ao brasileiro comum e às empresas de todos os tamanhos de sua condição de prever receitas e despesas e de recuperar o sentido da palavra "orçamento".
A abertura econômica, as privatizações e o estímulo à modernização das empresas brasileiras foram inseridos no Plano Real como bases para o aumento de eficiência da nossa economia, que precisava e precisa atingir níveis de competitividade para poder competir em mercados cada vez mais globalizados. As reformas modernizadoras destinadas a corrigir distorções de Constituição eram e são objetivos básicos do Plano Real que, com o apoio do Congresso, conseguiu inclusive acabar com monopólios e corrigir as aberrações do nosso sistema previdenciário.
Muito foi feito no Plano Real e muito precisa ainda ser realizado para que se concretize o seu objetivo maior, que é social, muito mais do que econômico e político. É que o Brasil não pode mais adiar o resgate de suas dívidas sociais, que só poderão ser eliminadas se os avanços prosseguirem, se a reforma do Estado retirar das costas do Tesouro responsabilidades que não lhe cabem e os recursos oficiais puderem se concentrar na melhoria da educação, da saúde, da habitação e da alimentação do povo brasileiro.
O que acabou no Plano Real foi a âncora cambial, concebida em um momento bem diverso da economia mundial e que, nos primeiros anos, se mostrou eficiente e oportuna, dando suporte às transformações positivas de nossa economia. Nos últimos dois anos, com as crises que aplastaram a economia russa e cortaram as garras dos tigres asiáticos, a âncora cambial deixou de ser solução para se transformar em problema, na medida em que a volatilidade dos capitais internacionais ameaçava o Brasil, procurando nos transformar em "bola da vez". A política de defesa, baseada na elevação de juros, poderia ter dado certo se o problema fosse de curtíssimo prazo. Ao se constituírem em instrumentos permanentes, os juros altos contribuíram para desorganizar a economia, enfraquecer as empresas, desestimular investimentos, coibir o consumo. Até que não deu mais.
Agora é aproveitar as lições da crise e, principalmente, as reações positivas -dentro e fora do país-à liberação do câmbio. Vamos acelerar o processo de redução de juros e estimular as empresas a voltar a investir. Vamos tirar partido do dólar mais caro para desestimular importações desnecessárias e, de outro lado, promover o aumento de nossas exportações, gerando divisas, garantindo empregos e criando novas oportunidades de trabalho. Vamos lutar por todos os modos para evitar que a nova política abra espaços para um repique de índices inflacionários, impedindo que a carestia -de que falou o presidente Fernando Henrique- volte a maltratar o nosso povo.
Não vamos, no entanto, nos iludir. O caminho será árduo e difícil. O Brasil ficou mais pobre, mas estão de pé conceitos mais simples que vão eliminar a desconfiança na moeda e no país. Vamos estimular o turismo interno, que ficou mais competitivo pelo encarecimento das viagens internacionais. Vamos promover avanços na agricultura e na indústria, engajando todos os brasileiros na "batalha da produção", que é a única saída para o desemprego e a redução de oportunidades de trabalho.
Neste fim-de-semana o economista Edmar Bacha, um dos criadores e formuladores da política econômica que deu origem à nova moeda, afirmou em entrevista que os fatos desta sexta- feira podem ser "a base do renascimento do Plano Real".
Esse caminho está em nossas mãos. Para isso é preciso que lutemos para que a nova âncora do Plano Real seja fiscal e política. Que se baseie nos princípios que impedem governos sérios de gastar mais do que arrecadam. Que se apóie em conceitos éticos que exigem que a ação política e a vida pública sejam condicionadas, acima de tudo, pelo interesse público.
O Plano Real precisa, agora, ser fortalecido. É necessário, pois, que os governos estaduais e municipais, liderados pelo governo federal "caiam" no Real, acreditem nele, pratiquem seus princípios e persigam seus objetivos. Para que o Brasil, afinal, caia na real.


Benjamin Steinbruch, 45, empresário, graduado em administração de empresas e marketing financeiro pela Fundação Getúlio Vargas (SP), é presidente dos conselhos de administração da Companhia Siderúrgica Nacional e da Companhia Vale do Rio Doce.
E-mail: bvictoria@psi.com.br




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