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São Paulo, quarta-feira, 19 de fevereiro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Crise na aviação: fusão e confusão

PAULO RABELLO DE CASTRO

Sempre que um segmento da atividade econômica é considerado vital ou a ele se pode chamar de estratégico ou de "importante para o país", o consumidor corre o risco de pagar uma conta pelo que o empresário deixou de fazer e pelo atraso do governo em averiguar e agir acima de pressões políticas. Tem sido assim, sistematicamente, naqueles ramos que dependem de alguma concessão pública ou permissão, como na distribuição de energia elétrica, telefonia, água e esgoto.
A aviação civil não fugiu à regra e enveredou também pelo tortuoso caminho da crise. Nos últimos anos, de quatro companhias de âmbito nacional, uma nova surgiu no espaço da outra que submergia, enquanto as três demais, inclusive a líder do setor, apresentavam distintos tipos de problemas, desde fortes prejuízos em balanço, passivos trabalhistas e previdenciários até questões de segurança de equipamentos em vôo.
Uma vez instalada a noção de "crise no setor", tudo parece conduzir ao seu inevitável agravamento, a que assiste o desarmado cidadão -sabendo que, ao final, pagará mais, duas vezes, como consumidor e como contribuinte.
Da crise surge a confusão de idéias, de diagnósticos, sempre propícia às espertezas finais que conduzirão à socialização dos prejuízos sobre os trabalhadores -que perderão empregos- e sobre o cidadão -que pagará mais caro por um serviço possivelmente piorado.
Na origem da confusão gerada pela crise, há sempre uma forte dose de responsabilidade de governo, que se soma aos descaminhos dos gestores privados. Se comparássemos a empresa a um prédio de três pavimentos, no térreo estaria a base de governança da companhia, que sustenta ou fragiliza todo o edifício. No andar do meio estaria o pavimento regulatório-tributário, com o governo interferindo por meio de suas regras, recolhendo impostos, exigindo certos procedimentos.
No andar de cima, fica o mercado, no qual a empresa acaba lucrando ou tendo prejuízo, ante seus próprios custos e a concorrência que enfrenta. É este último o patamar dito operacional e financeiro. A confusão mais comum, nos recentes diagnósticos de problemas empresariais ou setoriais, é olhar para o pavimento de cima -o âmbito operacional, do mercado- e identificar nesse segmento as supostas origens da crise. Na aviação, as frases de efeito se multiplicam: "Temos empresas demais" (quantas seriam suficientes?) ou "alguém precisar controlar a oferta de assentos" (quem seria esse?) ou ainda "Bin Laden destruiu a aviação no mundo todo" (o que dizer das diversas empresas lucrativas?).
Ninguém pode pôr em dúvida as reais dificuldades da aviação civil no Brasil. É um setor complexo de operar e altamente competitivo. Mas é certo também afirmar que a fonte maior dos problemas do setor não está na operação das companhias em crise tanto quanto nos dois andares de baixo, da ação deletéria do próprio governo sobre elas e, principalmente, da má governança corporativa.
De fato nada se compara, em ordem de importância, aos problemas de gestão determinados, por exemplo, por uma governança do tipo fundacional, em que o poder na empresa nasce não de um grupo controlador, mas pelo exercício do poder político dentro do próprio ente fundacional. Mal comparando, é como se uma empresa carregasse nela um "governo do tipo parlamentarista". Só por acaso essa fórmula de controle não geraria fortes distorções e propensão a desvios de toda natureza. É o caso do grupo Varig, cuja operação, em si, ainda apresenta indicadores razoáveis, apesar de toda a crise no andar de baixo, da governança corporativa.
Por isso, não deixa de causar bastante perplexidade quando brotam, lá do fundo da incompreensão do problema, as soluções recorrentes, como a fusão de companhias num setor em crise. Uma fusão é sempre um salto perigoso porque, além de envolver a superação de choques de culturas diferentes, só encontra justificativa se são muito claras as vantagens operacionais ou financeiras dela advindas.
Mas, se o problema tem origem na governança corporativa da empresa ou no andar do meio (do governo) pela maneira equivocada de cobrar impostos e de se estabelecerem as regras de segurança e convivência, torna-se um erro cogitar a fusão como solução.
Primeiro será preciso mudar a governança empresarial, pacificar as relações como seus principais colaboradores -no caso, os empregados da companhia-, para, então, cogitar eventuais ganhos numa operação conjugada.
Porém as administrações em crise e às vezes o próprio governo, envolvido por sua parcela de culpa -seja porque taxa demais, fiscaliza de menos, onera de juros e pune pelo câmbio-, preferem manter o foco no andar de cima, para não ter de enfrentar a dura realidade da base dos problemas.
A verdade é que erros de diagnóstico -fusão e confusão- são contas a pagar para a sociedade que ajudou com sua renda, com seus impostos e com sua torcida a construir segmentos tão relevantes -como, no caso, a aviação civil nacional. O desperdício de esforços já realizados é a grande chaga econômica brasileira. A socialização dos prejuízos e a destruição de empresas para a salvação dos seus empresários (quando deveria ser o contrário!) são o mal recorrente que ainda poderíamos tentar evitar.
No meio da confusão, os pagantes diretos são os empregados da empresa em crise, que continuam a fazê-la operar, no andar de cima, até a undécima hora, enquanto vai se solapando seu patrimônio previdenciário e de esperanças de futuro.


Paulo Rabello de Castro, 54, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail -
paulo@rcconsultores.com.br


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