São Paulo, quinta-feira, 19 de fevereiro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O Brasil está sendo flexível na Alca

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Vou escrever hoje sobre a Alca, tudo bem? Imagino a reação do leitor: "Outra vez?". Bem sei (suspiro) que quase ninguém tem paciência com as fixações dos outros. Em relação a esse assunto, já me sinto um pouco como o Eduardo Suplicy com a renda mínima. Com o passar do tempo, conhecidos, correligionários, amigos e familiares do senador, tendo experimentado sucessivas e detalhadas explanações, entravam em pânico sempre que ele voltava a abordar a matéria. Alguns tentavam sair de fininho. Outros, menos cerimoniosos, se antecipavam e fugiam espavoridos à sua aproximação.
Constato com tristeza que venho sofrendo a mesmíssima incompreensão. O próprio Suplicy, amigo querido de muitos anos e uma das pessoas mais pacientes do planeta, já dá sinais de cansaço quando procuro mobilizá-lo para o tema Alca.
No domingo passado, aqui mesmo neste espaço, Rubens Ricupero intitulou da seguinte maneira a sua coluna semanal: "A Alca ficou chata". Confesso que fiquei ressentido de ver uma das minhas obsessões prediletas tratada assim, dessa maneira desrespeitosa. Mas, enfim, na substância o artigo estava muito bom. Outro artigo interessante sobre o tema foi o de Benjamim Steinbruch, também publicado neste espaço ("O sonho americano", em 17 de fevereiro de 2004).
Apesar do tédio que provoca no embaixador Ricupero, a Alca está atravessando uma fase muito delicada, possivelmente decisiva. A última reunião, realizada no início deste mês em Puebla, no México, terminou em impasse. Foi convocado novo encontro para março, também em Puebla, para tentar destravar as negociações.
Os americanos escolheram uma forma um tanto curiosa de divulgar a sua versão sobre o impasse: uma teleconferência de um funcionário do Ministério de Comércio Exterior dos EUA, concedida sob a condição de que seu nome não fosse revelado. A transcrição da teleconferência está disponível no site do ministério, o que confere um caráter oficial às declarações anônimas (ver "Background Teleconference Call by a "U.S. Trade Official" Regarding the Free Trade Area of the Americas Trade Negotiating Committee Meeting in Puebla, Mexico, February 7, 2004", www.ustr.gov).
Já discuti o impasse de Puebla em artigos anteriores. (Remeto os interessados a texto publicado no site da Agência Carta Maior: "Impasse na Alca: vale a pena continuar?", 10 de fevereiro de 2004, www.agenciacartamaior.uol.com.br).
Mas há um aspecto que ainda precisa ser ressaltado. Os EUA estão empenhados em transferir para o Mercosul a responsabilidade pelo impasse. Washington alega que o Mercosul é ambicioso em matéria de abertura de mercados (especialmente agrícolas), mas não se dispõe a fazer concessões relevantes em temas como serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual. A intransigência do Mercosul nessas questões prioritárias para os EUA estaria dificultando o avanço da negociação.
Intransigência? É difícil aceitar essa avaliação. O Brasil e seus parceiros do Mercosul têm sido muito flexíveis -talvez flexíveis demais.
O Itamaraty não divulgou integralmente as propostas apresentadas na Alca. Não obstante, a julgar pelos aspectos que vieram a público, a disposição de negociar e transigir parece clara.
O Mercosul propôs, por exemplo, a eliminação de todas as tarifas de importação para bens agrícolas e industriais em até 15 anos! Uma proposta ambiciosa, provavelmente problemática para vários segmentos importantes da economia brasileira -sobretudo se não for combinada com salvaguardas contra aumentos de importação que possam colocar em risco setores da economia e com cláusulas que permitam a proteção de indústrias nascentes e restrições à importação em caso de dificuldades de balanço de pagamentos.
Outro exemplo de flexibilidade: o Mercosul concorda em remeter para a OMC a discussão da legislação antidumping, como sempre quiseram os EUA. Aceita, além disso, que os subsídios domésticos à agricultura também fiquem para discussão na OMC, acatando outra pretensão de Washington.
Em contrapartida, nossos negociadores pretendem que os EUA também concordem em deixar fora da Alca a definição de normas referentes aos temas problemáticos acima referidos (serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual). Repare, leitor, que também nesse ponto a proposta do Mercosul é flexível. O Brasil e seus aliados pretendem negociar normas e disciplinas para esses temas no âmbito da OMC ou outros foros multilaterais, mas não se recusam a discutir na Alca acesso a mercados em serviços e investimentos, desde que a negociação se faça com base em "listas positivas", isto é, que a abertura se aplique apenas aos setores expressamente mencionados no acordo.
Nada disso parece suficiente para os EUA. Em Puebla, os negociadores americanos abraçaram firmemente a tese de que os países relutantes em aceitar compromissos pesados em todos os temas prioritários para Washington devem contentar-se com concessões menores em termos de acesso a mercados, especialmente agrícolas.
Ora, mesmo nos acordos de livre comércio tipo "heavy", inclusive nos recentemente concluídos, as concessões feitas pelos EUA em matéria de agricultura têm sido muito modestas. Pretendem reduzi-las ainda mais?
Faço minha a pergunta de um diplomata brasileiro com larga experiência em negociações internacionais: "Afinal, o que é que o Brasil tem a ganhar com a Alca?".


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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