São Paulo, quinta, 19 de março de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
Obsessão controlada

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.
Amigos, eis que baixa novamente a falta de assunto. Sobre o que escrever hoje? Será que vale a pena desancar outra vez aquele alto funcionário do Banco Central? Não, hoje não. Para desgraça dos colunistas semanais de economia, ultimamente a figura em questão recolheu-se a um mutismo pouco característico e interrompeu suas notáveis contribuições ao folclore econômico nacional.
Posso voltar à questão do câmbio? Uma olhada nos arquivos revela que não toco no tema (nesta coluna) desde janeiro. Mau sinal, mau sinal. Obsessivo que não cultiva sistematicamente a sua obsessão é um falso obsessivo, um obsessivo de araque, que apenas simula a nobre propensão a ter idéias fixas. Toda obsessão autêntica tem que ser um longo e paciente trabalho de auto-intoxicação.
Mas há pior. Constato, também, que há muito tempo não aparece nesta página a figura insubstituível do Nelson Rodrigues, santo padroeiro de todos os obsessivos. Ele, que já foi até título de artigo meu, anda tristemente esquecido e abandonado. Eis aí uma falha realmente grave, pois há muitos que só me lêem na esperança de topar com suas frases e piadas. Ainda ontem uma das minhas leitoras mais assíduas me incitava: "Fala no Nelson Rodrigues amanhã, vai, fala!".
Então, vamos lá. Observem o título geral desta coluna: "Opinião Econômica". Bem, segundo o Nelson Rodrigues, "opinião" é uma palavra altamente imprópria. Com as técnicas modernas de comunicação e massificação, o indivíduo pensa cada vez menos. A opinião deixou, há muito tempo, de ser um ato pessoal e solitário. Há sujeitos que nascem, envelhecem e morrem sem jamais ter arriscado um raciocínio próprio. Há toda uma massa de frases feitas, opiniões feitas e até sentimentos feitos à nossa disposição.
Com isso chegamos à questão do câmbio. Depois do que aconteceu em fins de 1997, já ninguém ousa questionar a tese de que a excessiva valorização cambial e outras imprudências da política econômica dos anos recentes deixaram o Brasil em posição altamente vulnerável. Todavia, uma sólida e compacta maioria "opina" que a política cambial brasileira não pode ser mudada. A "opinião" quase consensual é que qualquer tentativa de promover uma desvalorização controlada provocaria uma crise de grandes proporções.
Um dos grandes responsáveis pela propagação dessa profecia sinistra é o nosso ministro da Fazenda. Agora no domingo, voltou ao tema em longa entrevista ao "O Estado de S. Paulo". Malan discorria serenamente sobre a situação internacional e criticava, com razão, as propostas do FMI de liberalização dos fluxos de capital, quando, de repente, o repórter decidiu levantar a questão da política cambial brasileira. O ministro logo perdeu um pouco a compostura. Respondeu que, "com exceção de alguns acadêmicos e alguns elementos (sic) na imprensa", existe atualmente uma avaliação muito mais favorável sobre a condução da política cambial no Brasil.
Para Malan, "na atual conjuntura internacional, não existe essa idéia de maxidesvalorização controlada". E citou dois exemplos aterrorizantes em apoio à sua afirmação: "O México tentou fazer uma máxi controlada de 15% no final de 1994 e o mercado impôs uma desvalorização nominal de 100%. A Tailândia tentou fazer o mesmo, mais recentemente, e sua moeda sofreu uma desvalorização nominal de até 75%".
Os exemplos são relevantes? Uma das características comuns ao México em 1992/94 e à Tailândia em 1996/97 foi justamente a longa demora das autoridades econômicas em reconhecer a insustentabilidade da política cambial. Quando resolveram mudá-la, já era tarde para evitar o pânico financeiro. Os esforços anteriores de fugir à desvalorização haviam resultado em redução dramática das reservas do banco central e em aumento perigoso dos compromissos cambiais de curto prazo.
O México, por exemplo, dispunha de apenas US$ 11 bilhões em reservas internacionais em meados de dezembro de 1994, logo antes de aumentar em 15% o limite superior da banda cambial. Os passivos externos de curto prazo (inclusive dívida pública em dólares), com vencimento em 1995, alcançavam nada menos que US$ 74,6 bilhões. A julgar pelos dados oficiais, a situação brasileira não chegou a esse ponto.
Por outro lado, há diversos exemplos mais recentes de desvalorizações bem-sucedidas. Aqui na América Latina, o Chile e o próprio México, valendo-se da flexibilidade dos seus regimes cambiais, responderam à turbulência desencadeada a partir do leste da Ásia com depreciações significativas de suas moedas desde outubro de 1997. Mesmo no leste da Ásia, temos o caso de Taiwan que, apesar de estar próximo do epicentro da crise, produziu uma desvalorização controlada em relação ao dólar, atenuando a perda de competitividade resultante das desvalorizações muito mais acentuadas das moedas de vários de seus vizinhos.
Outra experiência interessante é a da República Tcheca, cuja moeda foi submetida a forte pressão em meados de maio de 1997, na mesma época em que a Tailândia estava nos estágios finais da sua longa luta para defender uma política cambial insustentável. A República Tcheca tinha vários pontos em comum com a Tailândia: elevados déficits no balanço de pagamentos em conta corrente, grande dependência de capitais de curto prazo e um regime cambial bastante inflexível.
Em fins de maio, depois de um curto período de juros extremamente elevados e de perda de reservas, o governo tcheco resolveu abandonar a banda cambial. De acordo com avaliação publicada pelo FMI em documento de dezembro último, essa decisão de abandonar a banda com relativa rapidez, "antes que a posição do banco central estivesse substancialmente comprometida, ajudou a lançar as bases para um rápido retorno a uma relativa estabilidade cambial em um nível moderadamente depreciado".
A principal lição da experiência internacional recente não é que a desvalorização controlada é impossível, mas sim que agarrar-se indefinidamente a políticas de valorização cambial, ainda que com apoio geral da "opinião", é extremamente arriscado e pode resultar em verdadeiras hecatombes financeiras.


Paulo Nogueira Batista Jr., 42, professor da Fundação Getúlio Vargas, escreve às quintas-feiras nesta coluna.
E-mail: pnbjr@uol.com.br



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