São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

A autonomia da China

LUCIANO COUTINHO

Não há paralelo para o sucesso da política econômica chinesa nos últimos 20 anos em termos de sustentação de elevada taxa de crescimento (de 8,5% ao ano, em média), redução da pobreza e avanço competitivo medido em termos de participação nas exportações mundiais (cresceu de 0,9% em 1980 para 3,4% em 1998). Se avaliado com base na PPP (paridade de poder de compra), o PIB da China é hoje o segundo do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Sua taxa agregada de investimento alcança 40% do PIB e seu índice de alfabetização plena é de 82% da população.
Apesar da veloz abertura econômica (a corrente de comércio exterior subiu de 16% do PIB em 1980 para 41% em 1999), é notável sublinhar que a China não se tornou vulnerável. Sua política econômica não permitiu a formação de um déficit em transações correntes que a obrigasse a tomar recursos emprestados no mercado internacional. Bem ao contrário, a China ostenta um significativo superávit comercial, é grande receptora de investimentos diretos estrangeiros e mantém suas contas externas com saldo positivo, acumulando reservas de divisas superiores a US$ 200 bilhões. Por isso, apesar do elevado grau de abertura comercial, a economia chinesa tem-se mostrado bastante robusta ante os choques externos, tendo ultrapassado quase incólume as crises que flagelaram as economias emergentes desde 1997.
Mas, apesar do inegável sucesso até agora, não são fáceis os desafios que se antepõem ao seu futuro. Desde logo há o repto de sustentar uma elevada taxa de crescimento sem a qual não se criam empregos na escala necessária para manter a hegemonia do PC sobre o Estado (associado às Forças Armadas) numa sociedade crescentemente permeada por valores consumistas e individualistas, que tendem a erodir o substrato ético e ideológico do seu regime político monopartidário. O tamanho da população chinesa (1,3 bilhão de pessoas) e a intensidade da migração campo-cidade requerem a criação de, pelo menos, 10 milhões de novos empregos por ano para manter o equilíbrio social, evitando que o desemprego urbano suba de forma desestabilizadora.
Esse brilhante desempenho econômico exigiu e exige exportações e importações crescentes. A forte expansão das importações nos últimos anos resulta de duas condições: 1) da estreita base de recursos naturais e de terra agricultável, que requer importações suplementares de várias matérias-primas e alimentos; 2) da óbvia necessidade de importar bens de capital, tecnologia e componentes sofisticados para dar suporte à expansão industrial.
Até o presente, a China tem conseguido realizar um extraordinário e continuado incremento de suas exportações (US$ 249,3 bilhões em 2000) para fechar com folga as suas contas, tendo-se tornado a campeã mundial em manufaturas leves intensivas em trabalho (por exemplo, brinquedos, artigos esportivos, calçados, vestuário, malas e artigos de viagem). Mas não é mais possível que sua participação (já alta, entre um quarto e um terço) continue crescendo no mercado mundial desses bens. Será necessário diversificar, ingressando em setores mais dinâmicos e de maior conteúdo tecnológico. A política chinesa está-se movendo nessa direção: equipamentos de informática e de telecomunicações já ocupam posições importantes na pauta exportadora (com, respectivamente, US$ 6,2 bilhões e US$ 5,9 bilhões em exportações em 1998). O governo tem priorizado o desenvolvimento dos setores das tecnologias de informação e vem negociando associações com empresas estrangeiras a fim de absorver capacitação tecnológica e obter canais de exportação. Simultaneamente há firme apoio às empresas nacionais, com significativa expansão recente de programas de P&D, treinamento e formação de recursos humanos de alto nível.
A escassez relativa de recursos naturais (reservas de água doce, florestas, terras agricultáveis, recursos minerais) diante do tamanho da população, assim como o ritmo de deterioração do ambiente, constitui problema grave. É necessário poupar os recursos naturais através de inovações técnicas, de formas inteligentes de racionamento e da escolha de especializações econômicas menos demandantes dos fatores escassos. Nesse sentido, o complexo das tecnologias de informação é uma opção duplamente adequada (dos ângulos ambiental e de competitividade exportadora).
A China terá ainda de enfrentar vários outros desafios, a saber: reestruturar e fortalecer o seu sistema bancário, comprometido com empréstimos insolventes; lidar com as crescentes desigualdades regionais e sociais; avançar na modernização do aparelho do Estado; aperfeiçoar sua estrutura fiscal e tributária; cuidar bem dos setores em que predomina a empresa privada. Essa é, sem dúvida, uma agenda difícil, mas a China tem a grande vantagem de ter construído condições autônomas para tocar um projeto nacional de desenvolvimento coeso e articulado por um Estado razoavelmente competente, consciente e pragmático. Sua experiência deveria inspirar muitas lições ao Brasil.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).

Texto Anterior: Opinião econômica - Rubens Ricupero: Olho neles
Próximo Texto: Luís Nassif: A flor incandescente da poesia
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.