São Paulo, domingo, 19 de maio de 2002

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LUÍS NASSIF

A flor incandescente da poesia

Admito que não foi uma dica brilhante que me deram, e não foi gesto prudente aceitá-la. Mas quando me informaram que o Murilo e o Zé tinham sido presos na invasão do largo São Francisco, em pleno 1969, achei que seria legal ficar hospedado no apartamento vago que tinham na Casa do Estudante, ali na avenida São João. Parece que o João estava por lá e ficara com as chaves.
Em circunstâncias normais, a idéia até que seria válida. Mas estávamos sob o Ato Institucional nš 5, que instituiu a ditadura, e a Casa do Estudante era um centro conhecido de agitação.
A besteira que fiz não foi me expor aos milicos, mas aos antimilicos, devido ao detalhe de que não me dei conta, quando saí de Poços, mas que começou a pesar como um pressentimento quando desci do ônibus na avenida São João e rumei para a Casa do Estudante: estava com o cabelo à escovinha, na condição de atirador do Tiro de Guerra 147 de Poços de Caldas.
Cheguei na Casa do Estudante, um pardieiro de mais de dez andares, peguei a chave com o João, entrei no apartamento e fiquei meia hora curtindo um LP do Ataulfo Alves, do nosso amigo Tomas Tarquínio. Depois tirei a roupa, os óculos e deitei só de cueca.
Foi quando o mundo desabou em cima de mim. Acordei com murros na porta, levantei meio tonto, abri, e dei de cara com quatro estudantes, dois rapazes e duas moças. Um dos rapazes eu conhecia, era o Natan, de Aguaí, com quem já tomara uns pileques no Bachianinha. Anos depois Natan entraria para a guerrilha e fugiria do país com uma bala na perna. Naquele momento, eu sem óculos e com o cabelo à escovinha, ele não me reconheceu, perguntou vociferante "quem é você" e a mulher magrinha nem esperou ele completar a pergunta e já avançou de porrada para cima de mim, me chamando de meganha f.d.p. e perguntando o que eu havia feito com seus amigos (deles).
A muito custo falei para o Natan que eu era eu, ele me perguntou o porquê do cabelo à escovinha e eu respondi se ele nunca tinha ouvido falar em serviço militar obrigatório. Aí ele me reconheceu e segurou a potra braba que teimava em me cobrir de porrada. E foi essa a única razão de eu não ter tomado uma porrada da qual teria motivos para me vangloriar para o resto da vida: a dona do murro era uma moça magrinha de nome Orides Fontella, minha vizinha de São João da Boa Vista, na época uma estudante de letras com inclinações para a poesia.
A vida não foi feliz com Orides, nem ela com seus amigos. Nos anos seguintes, acompanhei à distância a sua carreira, os elogios que seu talento acumulava e os receios que seu nome provocava.
Vivia miseravelmente. Fez carreira no serviço público e se aposentou como bibliotecária. Teve consagração em vida dos maiores críticos nacionais, dentre os quais Antonio Cândido de Mello e Souza. O professor a ajudou como pôde, com críticas consagradoras e com uma bolsa de estudos que ele recebera de uma fundação estrangeira.
Orides reagia como um bicho acuado, um vulcão de sensibilidade que explodia na poesia mas não conseguia canalizar para as relações pessoais. Agredida pela vida, não sabia responder aos gestos de carinho e de atenção. Explodia do mesmo modo que quando era agredida. Do professor, cortou as roseiras. Deve ter feito pior com o David Arrigucci. Fazia escândalos com amigos, explodia com protetores, se perdia e perdia tudo o que tinha e, quando nada mais tinha, ia abrigar o corpo magro no velho prédio da Casa do Estudante.
A única luz que provinha dela saía pelos poemas que rabiscava desesperadamente, até se esvair de vez em um sanatório de Campos do Jordão, anos atrás.
Seu nome está consagrado nos círculos mais seletos de poesia, e sua obra, dispersa. Dia desses, encontrei minha antiga professora de português, a Ana Maria Salomão, que me presenteou com um conto com o qual venci um concurso do Instituto Educacional de São João, em 1968, do qual o juiz foi o professor Antonio Cândido.
Ana procura juntar as poesias esparsas de Orides. É trabalho insano. A poeta morreu sem deixar testamento e há que se atentar para o inventário, para os protocolos, para a burocracia, a mesma que fazia Orides explodir como uma flor de lava incandescente.
A cada dia que passa mais aumenta sua reputação. Para muitos, Orides já faz parte do Olimpo das maiores poetas do século. Na minha memória, será sempre a moça magrinha que explodia uma agonia que não sabia explicar, uma fúria selvagem, rústica, que servia para encobrir a poeta que não se bastou.

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