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EFEITO CURUPIRA
Fraude em órgão ambiental indica "aparelhamento" do Estado líder em desmatamento pelo setor produtivo
Agronegócio e corrupção devastam MT
CLAUDIO ANGELO
ENVIADO ESPECIAL A MATO GROSSO
Corre em Cuiabá a seguinte anedota: toda vez que via alguém sair
cabisbaixo da sede do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) com uma licença negada,
o vigia do órgão dizia: "Não fique
triste. Eu conheço uma pessoa
que resolve o seu problema".
A piada é um reflexo sombrio
do descontrole e da corrupção na
política ambiental em Mato Grosso -e que explicam por que
aquele Estado respondeu, sozinho, por 48% do desmatamento
na Amazônia em 2003-2004.
De um lado, uma quadrilha instalada dentro do Ibama e desmontada no início do mês pela
Operação Curupira, da Polícia Federal, dominou o "negócio" da
madeira no Estado.
Do outro, um esquema de concessão fraudulenta de licenças
ambientais pela recém-extinta
Fundação Estadual do Meio Ambiente, a Fema, liberou produtores rurais e pecuaristas para "passar o correntão" -expressão local para o desmatamento- nas
florestas e cerrados do Estado. É
essa fraude, que só agora começa
a ser investigada, que responde
pelo grosso do desmatamento. "A
máfia não é dos madeireiros. Ela
tem ligação com o agronegócio",
disse à Folha o procurador de Justiça do Meio Ambiente do Estado,
Domingos Sávio Arruda.
A Fema era comandada pelo secretário do Meio Ambiente do governador Blairo Maggi (PPS),
Moacir Pires, demitido no dia 2,
quando teve prisão temporária
decretada. Pires é irmão do vice-presidente do PFL mato-grossense, Jorge Pires, que preside a Associação dos Criadores de Mato
Grosso, amigo e aliado de primeira hora de Maggi na campanha
que o levou ao governo, em 2002.
Ambientalistas avaliam que a
indicação de Pires para o cargo sinalizou o "aparelhamento" do Estado pelo agronegócio, representado no poder pelo próprio Maggi, seu secretário da Agricultura,
Otaviano Pivetta, e o senador ruralista Jaime Campos (PFL).
"Cerrado denso"
Um sinal disso é um projeto de
lei enviado pelo governo em abril
à Assembléia Legislativa. O texto
"extingue" as florestas de transição, objeto de uma polêmica entre o Estado e o governo federal
por conta do total de desmatamento que pode ser autorizado
em propriedades rurais ali -20%
segundo a lei federal, 50% segundo a Fema- e "cria" a figura do
cerrado denso, no qual o desmatamento de 50% seria autorizado.
Sob Maggi, Mato Grosso tem
aproveitado suposto conflito entre legislações para desmatar 50%
em áreas de floresta transicional
(ecótono, ecossistema que marca
a transição entre o cerrado e a floresta densa), estratégicas para a
expansão da soja -incluindo as
da região de Querência, nordeste
do Estado, onde o governador
tem terras.
Uma lei estadual de 1995 autoriza o corte raso em 50% das propriedades rurais nesse tipo de floresta. No entanto, em 2001, uma
medida provisória alterou o Código Florestal Brasileiro, ao elevar a
proteção do ecótono a 80% e
manter uma tolerância maior ao
corte em cerrados: só 35% deles
ficariam como reserva legal. Pela
Constituição, a lei federal tem
prevalência sobre a estadual.
Os produtores rurais de Mato
Grosso alegam insegurança com
o fato de a lei federal ser uma MP,
e ora se baseiam na lei estadual ultrapassada, ora simplesmente
descumprem a legislação.
"Economicamente, como teremos condições de assumir uma
reserva legal de 80%?, questiona
Jorge Pires. Ele diz apostar que, se
a MP for votada, o limite de 80%
de reserva legal cairá.
O modo de interpretar a lei tem
impacto econômico direto: a diferença entre averbar a reserva legal
como cerrado ou floresta, para
uma área de 10 mil hectares de soja, pode chegar a R$ 25 milhões.
A denúncia oferecida pela Procuradoria da República em Mato
Grosso contra Pires, o ex-diretor
de Florestas da Fema Rodrigo Justus e mais cinco funcionários do
órgão lista oito casos em que a Fema licenciou grandes propriedades rurais dentro de terra indígena, averbou reservas legais de fazenda dentro de unidade de conservação de proteção integral e
classificou floresta como cerrado.
Além disso, a gestão de Pires
desmantelou o sistema de licenciamento ambiental de propriedades rurais do Estado, implantado em 2000 e que havia feito o
desmatamento em Mato Grosso
cair 36% em 2001 e 2002.
O sistema usava imagens de satélite das propriedades rurais licenciadas para monitorar a evolução do desmate de ano a ano.
Caso fosse observada irregularidade, o fiscal da Fema já saía para
campo com a multa pronta.
Em 2003 e 2004, a Fema parou
de ir a campo. Em depoimento ao
Ministério Público em maio, um
fiscal do órgão disse ter recebido
"ordens superiores" para não
multar ninguém. Além disso, Pires suspendeu em 2003 o contrato
com a empresa de sensoriamento
remoto Tecnomapas, que fornecia as imagens, acusando-a de
conluio com o governo passado.
"Nessa época eu comecei a ler
Maquiavel", lembra o geólogo
brasiliense Salatiel de Araújo, que
presta serviço à Tecnomapas.
"Todas as investigações que iniciamos têm irregularidade", diz
Arruda, que, com o interventor da
Fema, Marcos Machado, reforma
a política ambiental do Estado.
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