São Paulo, segunda-feira, 19 de julho de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Crédito negado

JOÃO SAYAD

A economia cresce 3,5%, 4%? Crescerá neste ano, o ano que vem e o outro? O emprego está aumentando? O que é verdade e o que é uma sensação exagerada de bem-estar depois da crise?
Impossível saber, não se pode confiar nos críticos nem nos áulicos. Só uma coisa é certa: a recuperação da economia permite que o Banco Central não abaixe os juros neste ano.
Vamos até o o fim do ano com juros reais de 10%, que serão pagos com mais dívida pública e mais aperto fiscal.
Para os usuários dos serviços do setor público, principalmente os pobres, a notícia é ruim. Transportes públicos, saúde e educação continuarão precários e como um obstáculo para o crescimento.
Para o mercado financeiro, estamos cevando uma dívida impagável que no ano que vem ou no próximo criará instabilidade, elevação da taxa cambial e crise.
Quando a taxa de juros é excessivamente alta, o empresário sentado à frente da mesa do gerente do banco parece um sujeito de má-fé. O gerente ouve o pedido de empréstimo, pede informações cadastrais, o último balanço, é simpático, mas sabe que ninguém é capaz de pagar taxas de juros de 16% ao ano.
O empresário preenche o formulário, na semana que vem a diretoria resolve. O pedido é negado. O gerente bota a culpa na diretoria. Depois, longe dos olhos aflitos do cliente, respira aliviado. A diretoria tem razão.
Os juros são excessivamente altos quando são maiores que a taxa de crescimento da economia (3,5%) mais 60% da inflação esperada (4%). É possível pagar 7,5% de juros. Pagar 16% mais o "spread" do banco é impossível. O gerente compreende a aflição do cliente, mas não pode atender ao pedido.
Com juros de 16% ao ano, não adianta pedir para os bancos emprestarem. Os bancos estão certos, não devem emprestar para ninguém a não ser para o governo.Têm de proteger os depósitos dos seus clientes.
Dinheiro é crédito, um contrato entre duas partes: o padeiro promete pagar ao moinho de trigo R$ 100 por um saco de farinha daqui a um mês. Dinheiro não é um pedaço de papel ou uma grama de ouro. É criado por meio de operações de crédito entre duas partes, o tomador do empréstimo e o credor.
Parece óbvio, mas não é. Desde 1844, economistas discutem se o dinheiro é crédito ou uma coisa com existência física e sensorial e que tivesse valor por si só, como o ouro ou um pedaço de papel ornamentado. Ganharam os defensores da idéia de que o dinheiro era ouro.
A afirmação -dinheiro é crédito- é profana para metade dos economistas. Atualmente, é mais fácil ver que dinheiro é crédito. Temos cartões de crédito, de débito, bilhetes eletrônicos e até máquinas de vender Coca-Cola ou balas que aceitam sinais transmitidos por seu celular como pagamento.
O diretor da Casa da Moeda é apenas um especialista em logística e em papel não falsificável. Não conhece nem fala com o presidente do Banco Central, a não ser para pedir a assinatura que ornamenta o papel moeda.
As empresas brasileiras que exportam podem tomar empréstimo em dólares, créditos de exportação e importação. Estão protegidas contra desvalorizações cambiais, e crédito para elas é o dólar. A taxa de juros em dólar é 7% ou 8% para empréstimos de longo prazo. A desvalorização cambial não precisa ser considerada, pois, se ocorrer, os seus preços também aumentarão.
Se dinheiro é crédito e só existe crédito em dólares, a política de juros excessivamente altos do país dolariza a economia, disfarçadamente. Só exportadores podem comprar matérias-primas a crédito, vender e receber a prazo.
Resultado: as exportações brasileiras crescem e os setores que produzem para o mercado interno não crescem, pois falta crédito ou dinheiro. As empresas multinacionais têm a vantagem adicional sobre as nacionais, as empresas exportadoras e importadoras, sobre as empresas voltadas para o mercado interno. (O Cade independente deveria convocar o Banco Central independente, que está impedindo a concorrência entre as empresas).
As empresas menores, nacionais ou dedicadas ao mercado interno não crescem, ou crescem muito devagar, apesar das manchetes dos jornais.
Nos anos 30, a Bélgica desvalorizou a taxa cambial, desobedecendo a regra do padrão ouro e passou a exportar mais. Acumulou reservas, e com as reservas reduziu as taxas de juros internos e expandiu o crédito interno. Saiu rapidamente da crise. Outros países desvalorizaram, mas mantiveram a política de crédito apertada. O desemprego perdurou por muitos anos.
O Brasil adota a política errada. Mantém juros elevados, sufoca os setores não exportadores, o setor público, e ameaça a estabilidade com uma dívida interna impagável.
A inflação em reais é baixa. Mas o real é um dinheiro cada vez menos importante. O dinheiro brasileiro passa a ser o dólar, o único dinheiro que tem taxas de juros razoáveis. Se a taxa de câmbio subir, por qualquer crise internacional, a inflação em reais volta, mas o real é um dinheiro irrelevante -serve apenas aos pequenos e as empresas dedicadas ao mercado interno.
Se o país fosse um cliente de banco, agora, o gerente perguntaria: "Em que sentido o negócio é sustentável?".


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


Texto Anterior: Cresce importação de máquinas e insumos
Próximo Texto: Dicas / Folhainvest
Ações: Aquecimento do consumo interno faz instituição trocar recomendação

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.