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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Brasil 2022, o bicentenário da Independência

ALOIZIO MERCADANTE

"(...) Temos enormes potencialidades e enormes desigualdades. Precisamos retomar o hábito de pensar pela nossa cabeça qual o modelo que mais nos convém." Celso Furtado, maio de 1997

Depois de um período em que o rápido crescimento econômico, mesmo deixando sem solução a questão social, criou a ilusão de que poderíamos encurtar a distância que nos separava das nações mais desenvolvidas, o Brasil se encontra, desde o início dos anos 80, em uma situação de semi-estagnação e, pior ainda, diante de um ordenamento internacional no qual as macrotendências dominantes convergem para aprofundar as assimetrias de riqueza e de poder existentes.
A financeirização da economia mundial, desencadeada nos anos 70, potencializou as forças centrípetas que tendem a concentrar nos seus núcleos mais desenvolvidos a capacidade de acumulação de capital e de inovação tecnológica, ao mesmo tempo em que as políticas neoliberais praticadas internamente, como parte desse processo global, desaparelharam os países periféricos para a formulação e a implementação de políticas de desenvolvimento adequadas às suas realidades sociais.
As políticas neoliberais não somente restringiram o crescimento e tornaram mais vulneráveis os países em desenvolvimento mas também levaram ao desmonte dos mecanismos de planejamento estratégico -que possibilitavam organizar e racionalizar os investimentos, políticas e ações do Estado a médio e longo prazo- e expurgaram da sua agenda a temática do desenvolvimento. Além disso, subordinaram, direta ou indiretamente, o desenho das políticas econômicas nacionais aos critérios estabelecidos pelos centros de decisão da grande finança internacional. Os países periféricos ficaram presos em uma armadilha na qual o curto prazo e a "credibilidade" devida a credores e a especuladores internos e externos passaram a constituir o eixo da agenda dos governos nacionais.
O Brasil, para retomar seu processo de desenvolvimento, não pode ficar refém dos problemas monetário-financeiros de curto prazo. Como afirmou recentemente o presidente Lula, temos de pensar nosso país com grandeza, com perspectiva de longo prazo e visão nacional. Em 2022, completaremos 200 anos de vida independente. Podemos transformar a data em um marco na nossa história política e econômica, que assinale a maturidade do processo de construção do nosso projeto de nação e de sociedade.
Isso significa colocar-nos alguns objetivos e metas fundamentais. A primeira delas é reduzir, substancialmente, os atuais índices de pobreza e extrema desigualdade na distribuição de renda e riqueza e alcançar um grau de homogeneização social próximo ao que prevalece hoje em alguns países europeus de desenvolvimento médio, como a Itália. Lá, os 20% mais pobres da população detêm quase 9% da renda total (contra 2,5% no Brasil) e a participação dos 20% mais ricos é de 36% (contra 63,8% no nosso caso). A classe média -os 60% restantes- tem uma participação de 55%, bastante superior aos 33,8% de sua equivalente brasileira.
Será essencial também fazer uma verdadeira revolução educacional, que permita erradicar o analfabetismo, aumentar o índice de escolaridade dos atuais 7 anos para pelo menos 11 anos, elevar a qualidade do ensino em todos os níveis, assegurar a universalização do ensino primário e médio e fortalecer a universidade pública, consolidando sua autonomia e sua integração ao esforço de desenvolvimento científico e tecnológico do país.
Um terceiro objetivo estratégico é manter um nível de dinamismo do mercado de trabalho capaz de permitir a redução da taxa de desemprego total da economia dos atuais 20% (metodologia do Dieese) para um máximo de 5%, paralelamente à diminuição, para algo em torno de 10%, do número de trabalhadores sem carteira em relação ao total de assalariados. Isso implicará a criação de cerca de 35 milhões de postos de trabalho ao longo dos próximos 19 anos.
Tudo isso supõe alcançar taxas elevadas e sustentáveis de crescimento, que nos aproximem dos padrões hoje prevalecentes nas economias de desenvolvimento médio, como a Espanha, que em 2001 tinha renda média de US$ 14,3 mil contra US$ 3.100 do Brasil. Se crescêssemos a um ritmo similar ao do período que vai do pós-guerra até 1979, antes da destruição causada pela crise da dívida externa e pelas políticas neoliberais adotadas a partir de 1990 (cerca de 7% anuais), poderíamos, em 2022, elevar nossa renda média para cerca de US$ 10,5 mil. É uma taxa elevada nas atuais condições da economia mundial, mas dá a dimensão do esforço que será preciso realizar nessa esfera.
Simultaneamente teremos de avançar em diversos outros planos: a modificação da relação entre o Estado e a sociedade, com a democratização crescente de todas as instâncias de representação e decisão política, o equacionamento da dependência estrutural do país em relação ao capital estrangeiro, a criação de uma capacidade endógena de produção e difusão do conhecimento técnico-científico, a incorporação do conceito de sustentabilidade a todas as dimensões da política de desenvolvimento, a redução dos desequilíbrios regionais e a integração do território com critério de desenvolvimento nacional, a consolidação da soberania nacional sobre a Amazônia, dentro de uma visão estratégica de desenvolvimento social e ecologicamente sustentável, a redução de pelo menos 80% dos níveis atuais de violência, paralelamente à reforma e à humanização do sistema prisional, e a implantação, em todo o país, de um elevado grau de respeito e valorização dos direitos humanos.
Ao longo de 181 anos de vida independente, o movimento popular conseguiu forjar sua identidade e afirmar sua presença na sociedade brasileira. A eleição do presidente Lula é parte desse processo, que abre para o país a oportunidade de discutir um projeto estratégico de nação. O bicentenário poderia ser a data de referência para concretizar, nesse projeto, os sonhos que, historicamente, alimentaram a resistência e a luta do povo brasileiro contra a exclusão social, a dominação política e a dependência econômica.


Aloizio Mercadante, 49, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo, secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores e líder do governo no Senado Federal.

E-mail -
mercadante@senador.gov.br

Internet: www.mercadante.com.br



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