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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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LUÍS NASSIF

Os 71 de Curitiba

Eu conheço uma estatística de carne e osso. É um anjo de três anos, de nome Sofia. Viva, inteligente, amorosa, linda como uma deusinha eslava. Quando indagada sobre o que gostaria de ganhar de Papai Noel, responde: "Umas plaquetas".
Há alguns meses foi detectada doença rara que come seus leucócitos. Sofia passou a ser freguesa permanente de transfusão de sangue, hóspede permanente da hemorragia. Acostumou-se tanto à nova situação que, mal chega à enfermaria, já estende os bracinhos e não chora quando é picada pela seringa. Nem isso diminuiu o ritmo de atividade e o raciocínio vivo.
Em meados do ano suas plaquetas diminuíram muito, e o médico, em Belo Horizonte, atestou doença raríssima e lhe deu pouco tempo de vida.
Começou aí a grande luta contra o tempo para salvar Sofia. Como em uma ampulheta, a cada dia que passa diminui a quantidade de leucócitos de seu sangue. A cada dia a avó escarafunchava a internet à procura de explicações para a doença. A cada dia, o avô, físico e cientista respeitado, tentava encontrar especialistas no mundo que aceitassem vir ao Brasil para fazer pesquisas, passear, qualquer que fosse o motivo, contanto que pudesse examinar Sofia.
Montaram um site na internet, colocaram a foto e todos os exames de Sofia para que os especialistas estrangeiros pudessem analisar o caso e ajudar no diagnóstico.
Uma tia localizou um especialista na doença no Hospital do Câncer, de São Paulo, médico humano, interessado. Aqui, criou-se uma rede de solidariedade comovente e competente. Um seminário internacional sobre a doença, coincidentemente por aqueles dias, colocou à disposição de Sofia uma junta médica internacional.
Não era a doença que se receava, mas outra ainda mais rara. Novas rodadas de exame, nova feliz coincidência de um seminário internacional com especialistas da nova doença e, finalmente, se chegou ao diagnóstico: a saída seria um transplante de medula.
Amigos da família distribuíram fotos e e-mails pela internet, solicitando às pessoas que fizessem o teste de medula, para encontrar alguma compatível. O movimento sensibilizou pessoas em São Paulo e em Belo Horizonte. O Brasil real exercitava a solidariedade dos doadores e a competência da medicina brasileira.
No seminário em São Paulo estava o dr. Pasquini, que tornou a Santa Casa de Curitiba referência nacional de transplante de medula. A família se mudou para Curitiba para a corrida final que salvaria Sofia.
Como Sofia não tem irmãos, começou a pesquisa em bancos internacionais de medulas. A probabilidade de encontrar um doador compatível, não sanguíneo, é muito rara, mas as primeiras pesquisas identificaram doadores potenciais.
Mas aí ela virou estatística, virou superávit fiscal. No começo do ano, o ministro da Fazenda decidiu, espontaneamente, oferecer um superávit fiscal primário de 4,25% para acalmar o mercado. E o presidente do Banco Central jogou os juros nas alturas para não correr risco na sua missão. Acabou o dinheiro do SUS, acabou o dinheiro da Santa Casa, e a maratona de Sofia foi interrompida pela falta de recursos.
Hoje ela é uma estatística na Santa Casa de Curitiba: é um dos 71 pacientes à espera de um transplante de rins, que não têm irmãos para doar. Os recursos foram suficientes para apenas dois transplantes. Agora, interromperam-se as pesquisas, e os grãos da ampulheta escorrem mais depressa pelas veias dos 71 mártires desse superávit fiscal.
Por aqueles dias, a imprensa comemorava o feito extraordinário, o empenho vigoroso do ministro da Fazenda, médico, e do presidente do Banco Central, portadores de velhos sofismas, aos quais se conferiu o destino de tantos milhões de brasileiros, de tantos milhares de Sofias.
O mercado se debruçou sobre indicadores tipo risco Brasil, falou em meta de inflação e comemorou. No meio da festa, não havia tempo nem interesse para se preocupar com indicadores de segunda classe, essa irrelevância de contar os brasileiros que tombaram e tombarão pelo caminho para que a meta se cumpra.
Mesmo que essa estatística tenha a cara de um anjo eslavo, de nome Sofia, e seus 70 companheiros.


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