UOL


São Paulo, quarta-feira, 19 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

REUNIÃO DE MIAMI

Para EUA, criação de grupo de países em desenvolvimento relançou o conflito Norte-Sul da época da Guerra Fria

Amorim é alvo "ideológico" do governo Bush

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MIAMI

O governo George Walker Bush identifica no santista Celso Luís Nunes Amorim, 61 anos, que vem a ser o chanceler do Brasil, o inimigo "ideológico" da Alca, conforme a Folha ouviu de um importante funcionário dos EUA que prefere não ser identificado.
Foi essa identificação que moveu o violento tiroteio verbal contra a diplomacia brasileira desde o fracasso da Ministerial da Organização Mundial do Comércio, em setembro, em Cancún.
O governo Bush viu na criação do G20 (hoje rebatizado de GX porque o número oscila, em geral, para baixo) uma operação ideológica, de relançamento do conflito Norte-Sul que foi um dos marcos da Guerra Fria, o confronto Ocidente/União Soviética vencido pelos EUA no fim dos anos 80.
Para o Itamaraty, o GX não passa de uma tentativa de fortalecer os países em desenvolvimento na negociação para a liberalização da agricultura nos países ricos.
A guerra não tão surda contra o Itamaraty só entrou em um período de trégua nos últimos dez dias, a partir da constatação de que, se continuasse, haveria o risco de que a Ministerial da Área de Livre Comércio das Américas em Miami se tornasse uma Cancún-2 em pleno solo norte-americano.
"É melhor conseguir a metade do pão do que correr o risco de um fracasso", é a avaliação do funcionário americano, que logo corrige: "Na verdade, os EUA sairão [de Miami] com 75% do pão".
O cálculo contraria todas as evidências e análises jornalísticas, inclusive da mídia norte-americana: é muito mais próxima da posição do Itamaraty a proposta conjunta Brasil/EUA de uma Alca "light" e, ainda por cima, fatiada, para que cada país faça acordos só nas áreas que lhe apetecerem.
O cerne da proposta conjunta, intitulado "A Visão da Alca", foi elaborado conjuntamente por Amorim e por Robert Zoellick, o chefe do comércio exterior norte-americano e, até então, o principal aríete da ofensiva de Washington contra o Itamaraty.
O governo Bush isolou o Itamaraty por ter recebido, conforme relatado à Folha, indicações de setores empresariais e do próprio governo Luiz Inácio Lula da Silva de que eram contra a limitação da Alca. Entre os que teriam manifestado essa contrariedade foi citado o ministro Luiz Fernando Furlan (Desenvolvimento).

Mudança
Pelo que a Folha apurou, não é bem assim. Furlan, de fato, disse, na reunião em que Lula tentou organizar o debate interno sobre a Alca, há pouco mais de um mês, que, primeiro, o Brasil era co-presidente da Alca (com os EUA) e não deveria, portanto, agir apenas em defesa própria, mas como uma espécie de magistrado que ouvisse os 33 parceiros do bloco.
Segundo, Furlan lembrou que a maior fatia das exportações brasileiras de manufaturados (de maior valor agregado) não vão nem para Europa nem para EUA, mas para os países da América Latina. Neles, o Brasil goza de preferências tarifárias (imposto menor de importação) em função de acordos no marco da Aladi (Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração).
Se ficasse fora da Alca, o Brasil perderia tais vantagens.
A partir dessa reunião, mudou o discurso. "Eu e o embaixador Peter Allgeier (o co-presidente norte-americano da Alca) não vínhamos nos comportando exatamente como damas", brinca agora o embaixador Adhemar Bahadian, o co-presidente brasileiro.
A mudança de discurso facilitou a reaproximação com os EUA, embora a proposta do país continuasse mais ou menos no formato pouco ambicioso, ao contrário do desejado por Washington.
Por que o governo Bush, mesmo assim, aceitou a "metade do pão"? O primeiro fator foi o temor de um fracasso em Miami. "Não haveria como sustentar o sistema interamericano se houvesse uma Cancún-2", diz Bahadian.
Segundo: perdeu-se o momento em favor de acordos de livre comércio, o que é admitido por partidários e inimigos deles. O funcionário norte-americano diz que, embora falsa, colou no público interno a alegação do movimento sindical do país de que 3 milhões de empregos na indústria foram perdidos desde 1994, ano de criação do Nafta, o acordo EUA/México/Canadá -a Alca é vista como extensão do Nafta.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que passa temporada em Washington, conta que, até pouco tempo atrás, não havia uma única informação sobre Alca na mídia norte-americana. Só recentemente começaram a aparecer. "Todas contra", relata FHC.
Mas a trégua pode durar pouco. Antônio Donizete Beraldo, um dos representantes da Confederação Nacional da Agricultura na coalizão empresarial brasileira que acompanha a negociação, acha que "os EUA vão enrolar o Brasil e pegar a gente lá na frente".
Parece teoria conspiratória, mas o fato é que Ross Wilson, negociador-chefe dos EUA para a Alca, passou a separar a reunião de Miami do que chama de "ultimate goal" (objetivo final) do país.
Traduzindo: Miami é só uma etapa intermediária em que, para evitar o fracasso, se aceita um cardápio desidratado. Mas, na fase final de negociação, a partir do ano que vem, tenta-se recuperar o alto nível de ambição original. Se for assim, Celso Luís Nunes Amorim não terá um 2004 fácil.


Texto Anterior: Privatização: Kirchner deve cancelar venda do Correo Argentino ao Grupo Macri
Próximo Texto: EUA negociam em 2004 acordo com andinos
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.