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REUNIÃO DE MIAMI
Para EUA, criação de grupo de países em desenvolvimento relançou o conflito Norte-Sul da época da Guerra Fria
Amorim é alvo "ideológico" do governo Bush
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A MIAMI
O governo George Walker Bush
identifica no santista Celso Luís
Nunes Amorim, 61 anos, que vem
a ser o chanceler do Brasil, o inimigo "ideológico" da Alca, conforme a Folha ouviu de um importante funcionário dos EUA
que prefere não ser identificado.
Foi essa identificação que moveu o violento tiroteio verbal contra a diplomacia brasileira desde o
fracasso da Ministerial da Organização Mundial do Comércio, em
setembro, em Cancún.
O governo Bush viu na criação
do G20 (hoje rebatizado de GX
porque o número oscila, em geral,
para baixo) uma operação ideológica, de relançamento do conflito
Norte-Sul que foi um dos marcos
da Guerra Fria, o confronto Ocidente/União Soviética vencido
pelos EUA no fim dos anos 80.
Para o Itamaraty, o GX não passa de uma tentativa de fortalecer
os países em desenvolvimento na
negociação para a liberalização da
agricultura nos países ricos.
A guerra não tão surda contra o
Itamaraty só entrou em um período de trégua nos últimos dez dias,
a partir da constatação de que, se
continuasse, haveria o risco de
que a Ministerial da Área de Livre
Comércio das Américas em Miami se tornasse uma Cancún-2 em
pleno solo norte-americano.
"É melhor conseguir a metade
do pão do que correr o risco de
um fracasso", é a avaliação do
funcionário americano, que logo
corrige: "Na verdade, os EUA sairão [de Miami] com 75% do pão".
O cálculo contraria todas as evidências e análises jornalísticas, inclusive da mídia norte-americana: é muito mais próxima da posição do Itamaraty a proposta conjunta Brasil/EUA de uma Alca
"light" e, ainda por cima, fatiada,
para que cada país faça acordos só
nas áreas que lhe apetecerem.
O cerne da proposta conjunta,
intitulado "A Visão da Alca", foi
elaborado conjuntamente por
Amorim e por Robert Zoellick, o
chefe do comércio exterior norte-americano e, até então, o principal aríete da ofensiva de Washington contra o Itamaraty.
O governo Bush isolou o Itamaraty por ter recebido, conforme
relatado à Folha, indicações de setores empresariais e do próprio
governo Luiz Inácio Lula da Silva
de que eram contra a limitação da
Alca. Entre os que teriam manifestado essa contrariedade foi citado o ministro Luiz Fernando
Furlan (Desenvolvimento).
Mudança
Pelo que a Folha apurou, não é
bem assim. Furlan, de fato, disse,
na reunião em que Lula tentou organizar o debate interno sobre a
Alca, há pouco mais de um mês,
que, primeiro, o Brasil era co-presidente da Alca (com os EUA) e
não deveria, portanto, agir apenas
em defesa própria, mas como
uma espécie de magistrado que
ouvisse os 33 parceiros do bloco.
Segundo, Furlan lembrou que a
maior fatia das exportações brasileiras de manufaturados (de
maior valor agregado) não vão
nem para Europa nem para EUA,
mas para os países da América
Latina. Neles, o Brasil goza de preferências tarifárias (imposto menor de importação) em função de
acordos no marco da Aladi (Associação Latino-Americana de Desenvolvimento e Integração).
Se ficasse fora da Alca, o Brasil
perderia tais vantagens.
A partir dessa reunião, mudou o
discurso. "Eu e o embaixador Peter Allgeier (o co-presidente norte-americano da Alca) não vínhamos nos comportando exatamente como damas", brinca agora o embaixador Adhemar Bahadian, o co-presidente brasileiro.
A mudança de discurso facilitou
a reaproximação com os EUA,
embora a proposta do país continuasse mais ou menos no formato pouco ambicioso, ao contrário
do desejado por Washington.
Por que o governo Bush, mesmo assim, aceitou a "metade do
pão"? O primeiro fator foi o temor
de um fracasso em Miami. "Não
haveria como sustentar o sistema
interamericano se houvesse uma
Cancún-2", diz Bahadian.
Segundo: perdeu-se o momento
em favor de acordos de livre comércio, o que é admitido por partidários e inimigos deles. O funcionário norte-americano diz
que, embora falsa, colou no público interno a alegação do movimento sindical do país de que 3
milhões de empregos na indústria
foram perdidos desde 1994, ano
de criação do Nafta, o acordo
EUA/México/Canadá -a Alca é
vista como extensão do Nafta.
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que passa temporada em Washington, conta que,
até pouco tempo atrás, não havia
uma única informação sobre Alca
na mídia norte-americana. Só recentemente começaram a aparecer. "Todas contra", relata FHC.
Mas a trégua pode durar pouco.
Antônio Donizete Beraldo, um
dos representantes da Confederação Nacional da Agricultura na
coalizão empresarial brasileira
que acompanha a negociação,
acha que "os EUA vão enrolar o
Brasil e pegar a gente lá na frente".
Parece teoria conspiratória, mas
o fato é que Ross Wilson, negociador-chefe dos EUA para a Alca,
passou a separar a reunião de
Miami do que chama de "ultimate
goal" (objetivo final) do país.
Traduzindo: Miami é só uma
etapa intermediária em que, para
evitar o fracasso, se aceita um cardápio desidratado. Mas, na fase final de negociação, a partir do ano
que vem, tenta-se recuperar o alto
nível de ambição original. Se for
assim, Celso Luís Nunes Amorim
não terá um 2004 fácil.
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