São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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Cooperativa-modelo agoniza no Nordeste

Mamona não resiste à invasão da soja e põe em risco núcleo de agricultura familiar no semi-árido baseado no "biodiesel social'

No auge do mensalão, Lula visitou fazenda e prometeu uma "nova Petrobras'; hoje, colonos do Piauí colhem 70% menos que em 2005

FÁBIO VICTOR
ENVIADO ESPECIAL AO PIAUÍ

Os discursos do presidente Lula nos últimos quatro anos apresentaram a mamona como a maravilha do "biodiesel social". Na vida real, o projeto-modelo da Brasil Ecodiesel para o combustível produzido com a semente da planta dá sinais de crise, pouco mais de um ano após a inauguração da usina da empresa em Floriano, no semi-árido do Piauí, a 240 km de Teresina. O óleo de soja é a principal matéria-prima da unidade.
O que seria o diferencial social do projeto, a Fazenda Santa Clara, núcleo de agricultura familiar mantido pela Brasil Ecodiesel em Canto do Buriti (a 260 km de Floriano e a 500 km de Teresina) para abastecer de mamona a fábrica, enfrenta queda na produção, protesto de colonos e denúncias de abusos por parte da empresa, incluindo trabalho escravo e infantil.
A Procuradoria do Trabalho no Piauí abriu dois inquéritos para investigar as denúncias, constatou irregularidades e vai propor uma ação civil pública contra a Brasil Ecodiesel. A empresa diz que sempre agiu corretamente (leia texto ao lado).
Lula esteve em Floriano em agosto de 2005 para inaugurar a usina, a primeira das seis que a empresa quer instalar. Visitou a Santa Clara. Era o auge da crise do mensalão. Comparou-se a Getúlio Vargas -a revolução do biodiesel, disse, seria como a criação da Petrobras.
"Se a gente não escolhesse a mamona, a gente iria ver o biodiesel sendo produzido da soja. Se fosse produzido da soja, ia beneficiar mais uma vez as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. E o Nordeste ia ficar abandonado", disse na ocasião.
Os fatos de hoje mostram que a "escolha" não foi suficiente para que o biodiesel da Brasil Ecodiesel no Piauí prescinda da soja, muito pelo contrário.
Sob a alegação de que cumpre "período de silêncio" imposto pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários), em razão da abertura de capital, a empresa negou-se a fornecer dados e vetou o acesso à usina de Floriano. Mas relatório à própria CVM aponta que sua matéria-prima principal é o óleo de soja (97,2%, contra 2,1% da mamona e 0,7% do algodão).
Políticos e técnicos de Floriano calculam que o óleo de soja represente cerca de 70% do que chega para ser processado na usina e que o de mamona dificilmente passa de 10%.
Funcionários da Brasil Ecodiesel ouvidos sob condição de anonimato confirmam o cálculo. Um deles diz que o interesse real na mamona é o "selo combustível social", sem o qual, por lei, as empresas não participam de leilões de biodiesel da Agência Nacional de Petróleo.
"No início a gente se empolgou e, de repente, cadê a mamona? Quando saí [da Brasil Ecodiesel], a produção com mamona estava baixa, e sei que caiu mais ainda", afirma o biólogo Enoque Ramos, funcionário da Brasil Ecodiesel por quase dois anos e que, quando secretário de Agricultura de Floriano, negociou a instalação da empresa.

Fazenda
Um dos motivos para o fracasso está na Fazenda Santa Clara. Numa área de 18 mil hectares, cedida pelo governo do petista Wellington Dias, a empresa instalou 630 famílias, em 19 células de produção. A cada uma foi cedido um lote, do qual 7,5 hectares são para o plantio de mamona, e uma casa. Há promessa de, após dez anos, terem a posse definitiva.
Hoje, o projeto vive sua pior fase. Não há dado oficial, mas levantamento com colonos de três diferentes células mostra que, neste ano, houve queda de cerca de 70% na safra. Os motivos da queda, dizem, são equívocos da empresa no manejo do solo e na época do plantio.
Os colonos não têm relação de trabalho com a empresa. Há os chamados "contratos de parceria", um relativo à posse da terra, outro, anual, referente à safra. As famílias vendem antecipadamente a mamona que produzem e recebem por isso R$ 160 por mês -o preço do quilo é fixado pela empresa, que desconta da remuneração 30% do plantio, feito por seus técnicos. A lavoura e a colheita ficam a cargo dos colonos.
Esse vínculo gerou denúncias de uso de trabalho escravo e infantil e a investigação do Ministério Público. O primeiro inquérito foi arquivado sob condição de a empresa se ajustar, mas auditoria subseqüente levou a autuação da empresa.


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