São Paulo, domingo, 19 de novembro de 2006

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ARTIGO

Friedman será lembrado por carisma e amor ao debate

Para professor da Universidade de Chicago, na qual o economista ganhador do Prêmio Nobel lecionou, legado mais importante é visão científica da economia

AUSTAN GOOLSBEE

ALGUÉM ENTROU em nosso refeitório na Universidade de Chicago na quinta-feira e anunciou que Milton Friedman morrera. Friedman passou sua vida intelectual aqui, então comecei a perguntar às pessoas aqui sobre ele e o que se recordavam dele. Ficou claro que, apesar de ter se aposentado quase 30 anos atrás, sua influência ainda é grande.
Para boa parte do mundo, Friedman é conhecido por sua mensagem em favor do livre mercado e contra a ingerência governamental, além de sua influência sobre líderes conservadores. Mas ele próprio disse certa vez numa entrevista que, embora seus esforços para influenciar a política econômica pública tenham recebido mais atenção pública, tinham sido algo secundário para ele. "Minha verdadeira vocação é a economia científica", disse ele.
O que chamou minha atenção quando conversei com meus colegas foi como o legado de Friedman entre outros economistas é de algumas maneiras semelhante, mas de outras maneiras totalmente diferente, da visão que o público tem dele.
Seu modo de pesquisar, sua personalidade e até mesmo os temas que ele estudou deram origem a boa parte da ciência econômica que conhecemos hoje, mesmo entre economistas cuja política difere muito da dele. Muitos dos tópicos que ele estudou, por exemplo, acabaram dando Prêmios Nobel a outras pessoas.
Um dos maiores impactos que Friedman exerceu sobre o estudo da economia foi o estabelecimento de uma visão de mundo fundamental. Dentro dessa perspectiva, a economia não é um jogo ou exercício acadêmico. Ela é uma ferramenta poderosa para a compreensão do funcionamento do mundo.
Friedman utilizou uma teoria simples e direta. Ele coletava dados de todas as fontes que conseguia. Ele queria verificar quão bem a ciência econômica corresponde ao mundo. Essa visão hoje é dominante entre boa parte dos economistas.

Discussão
Friedman adorava discutir. Dizem que ele era o maior debatedor do mundo da economia. Por improvável que isso possa soar, em vista de sua altura física pequena e de seus óculos grossos, poucos que o viram negariam que ele possuía carisma em abundância espantosa.
Isso provavelmente explica por que ele era tão bem-sucedido na televisão. Ao mesmo tempo em que era uma potência acadêmica, sabia explicar as coisas com clareza.
Friedman levou seu jeito impetuoso e amor pelo debate à Universidade de Chicago, inaugurando a era de ouro do centro mais respeitado do estudo da economia. No texto autobiográfico que redigiu para o Nobel de Economia, que recebeu em 1976, Friedman disse que, quando chegou à universidade, nos anos 1930, encontrou ali "um ambiente intelectual dinâmico de um tipo que eu nunca sonhara que pudesse existir. Nunca mais me recuperei".
E nós tampouco nos recuperamos. Chicago continua a ser um lugar de intensidade sem precedentes no mundo da economia, onde parecemos comer, beber e respirar economia, e a personalidade de Milton Friedman tem muito a ver com isso.
Ele sempre queria iniciar um debate sobre alguma coisa (ou, segundo seus detratores, fazer um pronunciamento sobre alguma coisa). Hoje, boa parte do elemento crítico nas pesquisas se foi -há democratas e republicanos no corpo docente-, mas a intensidade permanece.

Ícone
O engraçado da transição de Friedman ao status de ícone é que aconteceu sem que ele jamais tenha perdido o modo contundente e direto de se colocar. Ele não era necessariamente cortês. Aos 93 anos, estava ali declarando que o câmbio fixo é controle de preços e que o euro está fadado ao fracasso. Ele não se importava realmente se você gostava do que ele dizia. Isso se aplicava tanto à economia como ciência quanto à arena política.
Friedman foi a prova de que um grande economista pode ficar famoso apenas falando de economia. Mas ele não tinha medo de meter o nariz em lugares onde as pessoas diziam que os economistas não tinham lugar. Ele transmitiu essa atitude a alunos seus como Gary S. Becker, que receberia um Nobel em 1992, e a outros profissionais de sua área, especialmente entre a geração mais jovem de economistas, como Steven D. Levitt, que ficou conhecido por seu livro "Freakonomics" (escrito com o jornalista Stephen J. Dubner).
Para o mundo externo, o legado de Friedman pode ser a política do "laissez-faire", mas, para economistas -e especialmente para economistas de Chicago-, está ligado mais a procurar compreender como o mundo funciona e lançar um debate sobre isso.
Quando nós da Universidade de Chicago ouvimos a notícia de sua morte, chegamos a parar de argumentar e fazer silêncio por um momento. Foi um fato realmente extraordinário, em se tratando de economistas de Chicago. Cada um de nós pareceu contemplar o legado de Friedman, sozinho. Depois de um pouco de calma, a discussão recomeçou. Talvez isso fosse exatamente o que o velho Friedman teria desejado.


AUSTAN GOOLSBEE é professor de economia na Escola de Administração de Empresas da Universidade de Chicago. Este artigo foi publicado originalmente no "New York Times"


Tradução de CLARA ALLAIN


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