São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Desajuste maligno

LUCIANO COUTINHO Metas de inflação irrealistamente estabelecidas para 2005 vêm obrigando o Banco Central a praticar uma taxa real de juros astronômica. A conjugação desta com significativos superávits fiscal e em conta corrente, sob um regime de flutuação cambial, tornou o real uma aposta óbvia para os especuladores internacionais no contexto atual pró-depreciação do dólar. Os dois enormes déficits dos Estados Unidos (externo e interno) ensejaram um movimento especulativo contra o dólar com simultânea apreciação das moedas flutuantes, ouro e commodities. Em muitas economias, os bancos centrais têm evitado a apreciação cambial intervindo firmemente para contrabalançar essas operações especulativas. Agindo assim, mantêm a competitividade de suas exportações para toda a área do dólar (Estados Unidos, Canadá, América Latina e boa parte da Ásia, da África e do Oriente Médio) e ainda a reforçam em relação às economias que têm permitido a apreciação de suas moedas (como o Brasil, a Europa e o Japão).
Os bancos centrais dispõem de vários instrumentos: aquisição de reservas, "swaps", operações nos mercados futuros, controles e normas. É possível escolher o "mix" mais adequado aos objetivos macroeconômicos. Não é verdadeira, portanto, a alegação de que há pouco a fazer para evitar mais apreciação do real.
A tolerância das nossas autoridades diante da apreciação ininterrupta da taxa de câmbio é alarmante. Minimizam o efeito deletério sobre a balança comercial e pretendem usar o câmbio valorizado como fator antiinflacionário. Recorrem à falácia ao apontar os bons resultados recentes da balança comercial "apesar da taxa de câmbio média de R$ 2,70". Esquecem-se de que os resultados correntes das exportações e das importações respondem a decisões tomadas há mais de cinco ou seis meses -quando a taxa de câmbio ainda era razoavelmente competitiva. Incorrem em grave erro.
Desde logo, um conjunto de cadeias exportadoras brasileiras se vê significativamente prejudicado em suas operações para a área do dólar. Nas cadeias em que houve forte pressão de custos nos últimos meses (aumentos do aço, energia e petroquímicos), a erosão da rentabilidade das exportações é ameaçadora. É o caso dos setores de bens eletrônicos, automobilístico-autopeças, de tratores e máquinas agrícolas, de equipamentos elétricos, têxtil e vestuário, de borracha, de produtos alimentares, de açúcar e de produtos metalúrgicos não-ferrosos, conforme assinala recente estudo da Funcex (Fundação Centro de Estudos de Comércio Exterior) encomendado pelo Iedi (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial). Poucos têm conseguido escapar dos efeitos detrimentais da apreciação cambial. Isso ocorre devido à elevação de seus preços no mercado internacional ou ainda pelo fato de exportarem primordialmente para a área do euro (porquanto não é significativa a apreciação do real ante o euro). Entre essas exceções citam-se a siderurgia, os derivados de petróleo e a petroquímica.
Essa perda de rentabilidade das exportações decerto impactará o desempenho futuro da balança comercial, considerada a defasagem entre decisões e resultados. Do lado das importações, o efeito tende a ser mais rápido. Deve-se esperar por um surto de importações de bens de consumo e de gastos com turismo no exterior (especialmente na área do dólar) em detrimento do saldo da balança comercial de bens e serviços.
Em muitos setores, o mercado externo só se tornou um alvo estratégico para as empresas a partir das depreciações cambiais pós-1999. O descompromisso do Banco Central com respeito à competitividade das exportações pode fazê-las abandonar esse alvo, reorientando o foco para o mercado interno, hoje em expansão. No caso das transnacionais, por exemplo, as plataformas brasileiras podem perder, rapidamente, "mandatos" de exportação de partes ou produtos. Investimentos em ampliação de capacidade para exportação ou em criação de bases operacionais/comerciais no exterior podem ser postergados.
Não devemos nos deixar iludir pelo fato de que o comércio exterior continuará exibindo resultados confortáveis nos próximos meses. Tampouco pelo fato de que, em várias cadeias, os bons preços internacionais continuarão permitindo ganhos com as exportações apesar da defasagem da taxa de câmbio. O relevante é que, no que toca aos manufaturados -cuja participação nas vendas externas deveria ascender-, é inegável o risco de retrocesso. A taxa de câmbio brasileira vis-à-vis o dólar deveria flutuar hoje em níveis superiores a R$ 2,90 para assegurar um desempenho sustentado das exportações a partir de 2006 -quando se espera uma reversão dos preços de nossas commodities de exportação, num contexto de desaceleração do crescimento mundial. O Banco Central, portanto, deveria ser muito mais incisivo na aquisição de reservas. Ter um balanço de pagamentos robusto, com reservas muito maiores, é um dos pré-requisitos para a estabilidade da inflação (baixa volatilidade cambial) e para o crescimento sustentado. O outro pré-requisito é o desempenho prudente das contas fiscais. Monofocado nas suas metas de inflação, o Banco Central ignora essas premissas e fabrica desajuste macroeconômico ao onerar a política fiscal com crescentes encargos de juros e ao pôr em risco a recuperação da posição externa do país.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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