São Paulo, domingo, 20 de fevereiro de 2005

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Americanos e franceses polarizam convenção da Unesco

ALAN RIDING
DO "NEW YORK TIMES"

A idéia de promover a diversidade cultural em todo o mundo parece razoável. Reconhece que todos temos a lucrar com o livre fluxo de idéias, palavras e imagens. Encoraja a preservação de tradições locais e linguagens minoritárias, digamos. Trata as culturas dos países pobres e ricos como iguais. E, em termos mais restritos, oferece um antídoto contra a homogeneidade cultural.
Mas tentar transformar essa idéia aparentemente positiva em um tratado internacional começa a gerar uma série de complicações. Desde outubro de 2003, os 190 países membros das Unesco estão trabalhando no tratado, conhecido provisoriamente como Convenção sobre a Proteção da Diversidade de Conteúdos Culturais e Expressão Artística. A idéia é que o texto seja aprovado por consenso no final deste ano, mas não contem com isso. Nem mesmo um acordo quanto ao nome definitivo do tratado foi obtido.
Mas essa é uma questão é pouco importante quando comparada a divergências mais fundamentais. Liderada pela França e pelo Canadá, a maioria dos países negociadores quer asseverar o direito dos governos a salvaguardar, promover e até mesmo proteger suas culturas contra a concorrência externa. No campo oposto, um grupo menor de países liderado pelos Estados Unidos argumenta que a diversidade cultural tem mais condições de florescer na liberdade de uma economia globalizada.
Um esforço para romper o impasse está em curso na sede da Unesco, em Paris, onde delegados dos países-membros e especialistas trabalham nas centenas de emendas propostas para a primeira versão do texto. Mas, quanto mais avançam rumo a definições concretas, menos provável se torna que um consenso possa ser obtido. O motivo é simples. Por trás do manto idealista da diversidade cultural, há sérias questões econômicas e políticas em jogo.

Exceção cultural
A história começou com a última grande rodada de medidas de liberalização do comércio mundial, cerca de uma década atrás, quando a França obteve uma chamada "exceção cultural", que efetivamente autorizava a adoção de medidas protecionistas para a cultura. Agora, França e Canadá querem avançar ainda mais. Ao tornar a diversidade cultural parte indissociável de uma convenção da Unesco, desejam proteger a cultura das regras de livre comércio impostas pela OMC (Organização Mundial de Comércio).
Certamente, como maior exportador de filmes, programas de televisão e outras formas de conteúdo audiovisual, os Estados Unidos acreditam que sofrerão caso surjam novas restrições ao intercâmbio cultural. Quando os norte-americanos puseram fim aos seus 19 anos de boicote à Unesco, no final de 2003, os planos para a convenção já estavam bem adiantados. Em lugar de anunciar seu retorno à organização com objeções, os Estados Unidos optaram por defender sua posição durante as negociações.
O anteprojeto de texto do tratado, apresentado por 15 especialistas em 2004, tentava satisfazer a todos ao endossar o "livre fluxo de idéias, em forma de palavras e imagens", e ao ressaltar que bens e serviços culturais "não devem ser tratados como mercadorias comuns ou bens de consumo".
A resposta norte-americana foi clara. Embora o país apóie o princípio de diversidade cultural, advertiu que "controlar a expressão cultural não é consistente com o respeito aos direitos humanos ou o livre fluxo de informações".
Louise V. Oliver, embaixadora dos EUA à Unesco, explicou que "apoiamos a "proteção" como forma de alimentar a cultura, mas não apoiamos a "proteção" como forma de impor barreiras. Isso posto, "proteger" continua a ser um conceito bastante controverso no contexto da diversidade cultural, e por isso continua a ser uma questão sensível".

Exportação de novelas
As linhas de batalha estão se tornando claras. França e Canadá têm o apoio da China e dos países africanos, bem como de boa parte da América Latina, ainda que México, Brasil e Venezuela desejem liberdade para continuar exportando novelas. O apoio à visão norte-americana quanto ao livre comércio vem de outros países com interesses comerciais a defender: o Japão, devido à sua indústria de filmes de animação, e a Índia, em função de Bollywood, sua indústria cinematográfica.
Mas toda a atenção está concentrada nos EUA. "O objetivo norte-americano é que não haja convenção", disse um diplomata latino-americano, sob a condição de que seu nome não seja divulgado, "mas, caso haja alguma flexibilidade, os EUA não terão opção senão aceitá-la".
Funcionários do governo francês demonstram menos otimismo. Dizem que, ao usar emendas para impedir a assinatura de um acordo no final do ano passado, a esperança de Washington era de que todo o debate viesse a se emaranhar com as negociações de livre comércio que devem abrir nova rodada no ano que vem.
"Antecipo a abordagem usual dos EUA", disse Garry Neil, diretor-executivo da Rede Internacional pela Diversidade Cultural, organização não-governamental sediada em Ottawa. "Eles assumirão uma linha dura, debilitarão o texto ao máximo e depois não assinarão." Certamente, caso os EUA considerem que a versão final do tratado é inaceitável, poderiam romper a tradição de aprovação por consenso e solicitar a votação. Mas, mesmo que o texto seja aprovado por consenso, é provável que o Senado não o ratifique. Isso faz diferença?
Provavelmente não para a França, Canadá e alguns poucos defensores do nacionalismo cultural. Desde que uma convenção seja adotada e entre em vigor, alegarão ter autoridade suficiente para proteger suas culturas.
Mas uma questão mais interessante seria determinar a capacidade da convenção para ajudar a sustentar a diversidade cultural em países pobres demais para promovê-la sozinhos. Esse, afinal, é um dos supostos objetivos do exercício. No momento, corre o risco de ser esquecido.


Tradução de Paulo Migliacci


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