São Paulo, quarta-feira, 20 de março de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

Antropófagos tributários

PAULO RABELLO DE CASTRO

Parece piada , mas não é: "Fazenda quer tributar a poupança", dizia a manchete dos jornais do último fim de semana. Para qualquer economista com um mínimo de cultura das teorias de crescimento econômico, a notícia soa como: "Governo agora quer tributar a circulação do sangue no corpo humano".
Lendo com mais cuidado, descobre-se que a sanha tributária do governo tem uma boa desculpa distributivista. A "idéia", ainda em "estudo", é tributar a caderneta de poupança, compensando o aplicador com aumento dos juros (de 6% para 7,5%) e, com o resultado da nova arrecadação fiscal, da ordem R$ 2 bilhões, criar um subsídio para os financiamentos habitacionais. Vocês compreenderam? Não? Pouco importa. Mesmo eu, que na modéstia dos meus canudos venho estudando esse assunto há tempos, não consegui compreender absolutamente nada desse novo balão de ensaio dos nossos capatazes fiscais.
O governo, no âmbito tributário, parece estar chegando ao mais absoluto paroxismo. Não restam mais, aos nossos governantes, peias em sua escalada de impostos, taxas e contribuições de toda e qualquer natureza. Pior. Existe, na mídia serventuária e acomodada, a vontade de repetir a sabedoria convencional importada, que cumula de elogios o desempenho de quem "salva a pátria sangrando os patriotas". Quem já ouviu, por exemplo, o protesto do FMI contra o aumento brutal da carga tributária no nosso país? Silêncio... Se a alta da carga serve para fechar as contas das despesas explosivas no governo e se isso parece trazer a "tranquilidade" aos mercados financeiros, que cobram os juros mais altos do mundo, a opinião dominante na mídia estará de acordo, repetindo o argumento -de fato sem sentido- de que o governo está de parabéns por haver "equilibrado" as contas públicas.
O governo equilibrou suas contas, as contas dele, às expensas das do setor produtivo. Com isso tem pactuado o Congresso, sempre apressado em votar essa escalada impositiva para garantir a massa brutal de recursos que transita por Brasília. As projeções da carga tributária nacional para o corrente ano de 2002 são alarmantes: nossas estimativas, na RC Consultores, aproximam esse valor de 35%, na mera hipótese -aliás provável- de prorrogação da CPMF. A arrecadação federal e dos Estados tem, neste ano, um crescimento projetado de quase 20%, ante uma inflação de 5%, e um crescimento real da base produtiva do país de apenas 2,5%. Chama-se isso de eficiência? Enquanto o governo engorda 15% reais, a esquálida economia contribuinte se arrasta nos 2,5%. O governo "come" seis vezes mais rápido que o povo. É a perfeita antropofagia fiscal.
Os nossos antepassados não gostavam de comer o branco que chorava antes de ir para a panela. Parece que estragava a carne ou dava azar. Hoje, somos os índios que estamos sendo comidos pelo leão tributário, sem direito ao choro ou compaixão. Exagero? Nem um pouco. Outro dia, recebi notificações para recolhimento de taxas de fiscalização atrasadas, as quais caberia ao próprio órgão oficial ter cobrado no momento devido, dois, três anos atrás, mas não o fez no tempo certo. Por esquecido que foi, cobra-me, agora, com multa e juros. Os juros são os praticados pelo mercado entre 1998 e 2001, ou seja, os mesmos que ele, governo, teve que pagar por ser um devedor inconfiável. Em outras palavras, sou culpado pela culpa do governo e não tenho direito a recurso porque a cobrança já vem devidamente forrada das ameaças de praxe: o Cadin, a impossibilidade de certidão da regularidade, e por aí vai.
Ninguém nega ao poder público a necessidade e o poder de tributar. Porém algo de errado há num país em que a escalada tributária calculada pela carga fiscal veio ascendendo de 24% no início dos anos 90 para os projetados 35%, dez anos depois. Óbvio que a carga fiscal será tão maior quanto mais vagaroso for o crescimento do país. Mas, quando se torna desesperado o aumento da carga fiscal, passa a ser, em grande parte, responsável pelo não-crescimento do país. Não parece haver dúvida quanto a isso. O Brasil de ontem, dos anos 50, 60 e 70, praticava menos invasão fiscal ao contribuinte e o país crescia, ainda que com inflação (outra forma de imposto), na faixa de 5% a 10% ao ano. Os brasileiros respiravam. Hoje não respiram mais. O sócio oculto leva a maior parte do valor agregado pelas empresas. Nenhum indivíduo que cumpra suas obrigações fiscais começa a trabalhar para si próprio antes de maio. É porque passa, de janeiro a abril, trabalhando para sustentar o governo. Faz sentido?
Discutimos muito o crescimento e a urgência de reduzir a pobreza por meio de recursos públicos. Só com a CPMF, se prorrogada, serão arrecadados cerca de R$ 20 bilhões em 2002. Dizem que essa é a contribuição que retornará para a saúde e para a Bolsa Escola, nobres objetivos que ninguém discute. Contudo o prato de comida do brasileiro, a cesta básica, continuará taxado por uma das mais pesadas tributações do mundo, recheado de ICMS e contribuições federais. Por que a arrecadação da CPMF não é usada para desonerar os tributos do prato de comida, só para começar a redistribuir saúde para a base da saúde da sociedade, por meio da boa e barata alimentação? São perguntas sem resposta.
Por que, por exemplo, a CPMF não é compensada ou descontada dos recolhimentos dos empregadores ao INSS, aliviando o encargo social na relação de emprego, desonerando a mais espúria forma de contratação já inventada para destruir postos de trabalho formais no Brasil?
Não. O discurso oficial está congelado no seu espasmo arrecadatório. O tributo virou um fim em si mesmo, uma forma de manifestação imperial, ornada pelos elogios dos credores externos. Por isso é que abrimos o jornal para ler a manchete esquisita: governo que taxar poupança. Todas as formas de crescimento serão punidas. Estamos nos aperfeiçoando, rapidamente, na arte de devorar nossos próprios pedaços.


Paulo Rabello de Castro, 53, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico (RJ). Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.


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