São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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LUÍS NASSIF

O caipira é coisa nossa

Tenho especial admiração pela Danuza Leão. Mas a crítica que fez à Festa Junina do Palácio do Alvorada me pegou no fígado. Nada contra críticas ao Lula, porque presidentes foram feitos para serem criticados, mesmo. Mas tratar como tratou a minha festa favorita me deixou passado.
Ainda guardo na memória as festas juninas que fui ver em Aracaju. Foi como se abrissem as cortinas dos tempos, com o Nordeste de hoje refletindo meu sul de Minas dos anos 50. Antes que junho termine, ainda irei a outro centro nordestino de música junina, dançarei ao som de Luiz Gonzaga e Dominguinhos, de Assis Valente e Alceu Valença.
Minha amiga Danuza viu no bigodinho de Lula a elegia ao atraso, do Jeca Tatu, de Monteiro Lobato. Mas nossos caipiras não são assim.
Certa vez conversava com o embaixador Walther Moreira Salles sobre o fato de a imprensa, em uníssono, "acusar" o então presidente Itamar Franco de caipira. Sábio e cosmopolita, o embaixador retificou. "Não é caipira, não. Caipira é um sujeito ladino, que sabe compreender o mundo a partir do que aprende em seu canto. O Itamar é diferente: é provinciano." E toca a contar histórias e histórias sobre a sabedoria caipira.
Longe de mim enaltecer a falta de estudos, que é para ser lamentada, não celebrada. Mas o caipira não. O caipira é coisa nossa, como a goiabada cascão, que Assis Chateaubriand pretendeu introduzir na cozinha francesa.
São curiosas essas mudanças ocorridas na vida nacional. Historicamente, talvez o Rio de Janeiro seja a única região do país infensa a festas juninas. Desde o século passado era uma cidade cosmopolita, porta de entrada do Brasil. O interior nunca chegou a penetrar na capital. O máximo a que se chegou foi o regionalismo nordestino que dominou nos anos 20 a música urbana carioca.
Em uma longa pesquisa que fiz sobre a vida carioca nos anos 40 e 50, destacava-se o sentimento de internacionalização, da primeira sociedade mercantil moderna do país. Lendo "A Sombra" e outras publicações da sociedade carioca, percebia-se o sentimento de superioridade sobre o Brasil do interior -incluída, nessa classificação, a própria São Paulo. A bem da verdade, o estilo das festas e casamentos paulistanos contrastava nitidamente com a elegância do "café society" carioca.
Naqueles tempos, os grã-finos cariocas descobriram o negro. No pós-guerra, havia festas para celebridades estrangeiras, em casas com grandes quintais e morros ao fundo. Do alto desciam negros com seus batuques. Mas era uma mera emulação dos norte-americanos, depois que a cultura negra explodiu com o jazz.
Está certo que o nativismo que emergiu desse período era basicamente modernizante, na decoração, na arquitetura, na poesia, na literatura. Mas a cultura regional brasileira era celebrada como valor nacional.
Hoje em dia, as festas juninas são uma tradição de norte a sul. Não existe escola pública ou privada, popular ou de rico que não tenha sua festa junina. Dia desses, houve uma festa junina de grã-finos aqui em São Paulo em que o noivo era presidente de uma grande empresa de serviços, e a noiva, uma atriz conhecida. Creio, mesmo, que, se Fernando Henrique Cardoso tivesse montado uma festa caipira no Alvorada, seria saudada como um ato de requinte intelectual do sociólogo. Por que a crítica a Lula? Porque sua goiabada cascão era com queijo minas, não com camembert.
No ano passado fui a uma festa junina no sítio de Toninho Trevisan, em Itu. Levei minhas duas caçulinhas, mais Sofia, uma sobrinha de três anos que enfrentava problemas sérios de saúde. Foi inesquecível! Fiz o túnel com Dorinha, que ainda não completara quatro anos, vi Bibi dançando feito doida, de braços dados com Sofia, como se tivessem nascido sabendo, cercadas de adolescentes, adultos, velhos, enquanto uma bandinha despejava temas juninos. E eu, desengonçado e tímido como pode ser um filho de mineiros, me vi abraçando e dançando com minhas menininhas.
Levarei para sempre, no mesmo canto da memória onde guardo as festas juninas da minha infância.


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