São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Militarismo europeu atropela ortodoxia econômica

GILSON SCHWARTZ
ARTICULISTA DA FOLHA

Na visão que predomina entre investidores e organismos multilaterais, países do Terceiro Mundo, endividados, como Brasil e Argentina, são dignos de confiança apenas se os seus governantes abandonarem práticas consideradas populistas. O indicador crucial é o déficit público. Conter o déficit é o mesmo que conter o Estado. Somente governos que se disciplinam são dignos de crédito.
Os países mais poderosos do mundo, no entanto, frequentemente subvertem essa filosofia. Na semana passada, o exemplo dramático foram as declarações de Romano Prodi, presidente da Comissão Européia. Suas críticas ao Tratado de Maastricht (que regula a União Européia) chegam ao ponto de qualificá-lo como "estúpido", por serem suas regras "rígidas demais".
Ocorre que os dois países estruturantes do projeto de unificação, França e Alemanha, são os que mais ostensivamente frustram as expectativas de ajuste fiscal. Para Prodi, a conjuntura econômica adversa, com desaquecimento global e crise de crédito, torna absurdas as exigências de contenção fiscal.
No centro dessa polêmica está uma queda de braço entre o Banco Central Europeu e os governos. Os governos pressionam o BCE em busca de uma redução de juros. O BCE responde afirmando que a redução dos juros depende do cumprimento de metas de ajuste fiscal. É um contraponto conhecido nos países em desenvolvimento, em que geralmente os financistas levam a melhor. Também, pudera, esses países devem em moeda forte, e sua "queda-de-braço" é com o FMI, não com seus próprios bancos centrais (a não ser que, como ocorre frequentemente, o BC seja controlado por técnicos de confiança dos donos do poder financeiro).
Mas, se para um governo como o brasileiro ou o argentino, o confronto tem resultado em perda de soberania nacional e dependência financeira crescente, com fragilização progressiva do Estado, na União Européia a resultante é menos clara. A razão é relativamente simples, mas não aparece no discurso de Prodi. Ela pode ser encontrada não num panfleto antiglobalização ou em artigos de analistas, mas no discurso do ministro francês das Finanças.
Dez dias antes das declarações de Prodi, Francis Mer declarava, também ao jornal "Le Monde", que "decidimos que há outras prioridades na França" acima do equilíbrio orçamentário. E quais prioridades são essas, fortes a ponto de levar o ministro das Finanças a ignorar solenemente a reverência à "responsabilidade fiscal" que ganhou tantos adeptos fanáticos ao sul do Equador?
"Nós decidimos que há outras prioridades, por exemplo aumentar as despesas militares", declarou com toda a transparência o ministro. Se a França e a Inglaterra não derem o exemplo, afirma, "jamais nossa Europa terá credibilidade no plano militar". Para dar conta dessa prioridade, o jeito é empurrar para 2004 o programa de ajuste fiscal que deveria começar agora. Com relação ao déficit público, a França fará apenas "o que for possível", resumiu o comandante das finanças francesas.
Enquanto isso, os franceses comemoram a francofonia com amplo destaque para o mundo árabe que faz parte dessa família. Num momento em que o governo Bush leva ao extremo sua aposta na polarização contra setores populares do mundo árabe, o respeito francês (e, de resto, alemão) à "responsabilidade fiscal" tem firmeza apenas enquanto não colocar em risco as prioridades estratégicas do Estado francês e de suas pretensões a contestar o império americano.


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