São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Crescimento e equidade

ALOIZIO MERCADANTE

O nível de desigualdade social do Brasil não é só inaceitável do ponto de vista ético e absurdo da ótica da constelação de recursos e de potencialidades do país. É também vergonhoso quando projetado no cenário internacional: entre 110 países para os quais existe informação, listados pelo Banco Mundial, o Brasil é um dos que ostentam os maiores índices de desigualdade, qualquer que seja o método de medição utilizado.
A participação dos 20% mais pobres da população na renda total, por exemplo, é da ordem de 2,5% no caso brasileiro. Somente em Serra Leoa, na República Central Africana, na Guatemala e no Paraguai os mais pobres têm participação menor na renda do que no Brasil. Somos o quinto do mundo. Mas, se tomarmos o extremo oposto, os 20% mais ricos da população, o Brasil ganha três posições: é o segundo do mundo, com um nível de participação dos mais ricos na renda em torno de 63,8%, só superado pela República Central Africana, que ostenta uma marca de 65%.
A comparação com países de maior desenvolvimento põe ainda mais em evidência as distorções da estrutura distributiva brasileira. Com os Estados Unidos -que não chegam a ser um exemplo em matéria de distribuição de renda- temos muitas semelhanças nos estratos superiores da escala de distribuição. Lá, no entanto, os 20% de menores rendas têm participação maior no total (4%) . Os mais pobres dos mais pobres -os 10% de menores rendas- aqui participam com 0,9% e lá, com 1,8% da renda total. Além disso, a renda per capita desse segmento nos Estados Unidos é em torno de 22 vezes maior do que no Brasil, onde é da ordem de US$ 228 anuais, equivalentes a aproximadamente R$ 57 por mês, ao câmbio médio de US$ 3.
Já o confronto com as cifras relativas aos países europeus de desenvolvimento intermediário -como a Itália- mostra diferenças muito mais marcadas tanto no topo como na base da pirâmide de distribuição. Na Itália, os 20% mais pobres da população detêm 7,8% da renda total. Mesmo os 10% de rendas mais baixas têm participação de 3,5%, ou seja, praticamente quatro vezes mais do que no Brasil. Porém as diferenças são mais gritantes nos níveis superiores da escala. Os 20% de rendas mais altas detêm 36,3% da renda total, e a parcela dos 10% mais ricos não passa de 21,8%, menos da metade do que corresponde a esse segmento no caso brasileiro.
Mas a estrutura de distribuição de renda no Brasil não é apenas polarizada. Também os segmentos intermediários apresentam porcentagens de participação muito inferiores às que se encontram em países com estruturas sociais mais homogêneas. Por exemplo, se dividirmos a população brasileira em cinco grupos, cada um com 20% do total de habitantes, os três grupos de rendas mais baixas (60% da população) têm participação de somente 18% da renda total. No caso da Itália, esses grupos detêm 40,8% da renda total. É por isso que o coeficiente de Gini -indicador-síntese do nível de desigualdade, que varia de zero a um- é de 0,600 no Brasil (o terceiro mais alto entre os 110 países na lista do Banco Mundial) e de apenas 0,273 na Itália.
Mudar esse quadro e aproximar a estrutura de distribuição de renda do Brasil ao padrão italiano não é um objetivo impossível de ser alcançado. Obviamente não se pode modificar substancialmente a estrutura de distribuição da renda de um dia para o outro. Mas, dentro de um prazo de 20 anos, por exemplo, é perfeitamente viável atingi-lo. O que é preciso é começar já as mudanças necessárias, até porque as tendências atuais caminham no sentido de aumentar a desigualdade. E os prazos para enfrentar a questão social estão se encurtando dramaticamente.
O quadro acima ilustra a compatibilidade do processo redistributivo com o crescimento da renda, embora em ritmos diferentes, de todos os segmentos da população. Dito de outra maneira, a redistribuição se dá sobre a renda excedente gerada no período, supondo uma taxa média de crescimento da economia de 6% anuais, próxima da média do período de 1920 a 1980, e uma taxa de crescimento demográfico da ordem de, em média, 1% ao ano (*).
Essa projeção é extremamente simplificada, mas nos permite ter uma idéia da magnitude do esforço que se teria de realizar para alcançar um nível de homogeneização social compatível com o desenvolvimento já alcançado pelo nosso país. O crescimento sustentado da economia joga um papel-chave neste processo. É ele que permitirá uma maior ou menor margem de manobra para avançar em direção a esse objetivo.
Mas tão importante quanto a taxa de expansão do PIB é o padrão de crescimento que se adote. Incorporar a perspectiva redistributivista supõe muito mais do que adicionar ao atual modelo econômico políticas compensatórias, que podem atenuar expressões localizadas da exclusão social, mas são incapazes de alterar os mecanismos de reprodução e aprofundamento da desigualdade e da pobreza dentro de prazos compatíveis com a preservação da nossa democracia e da nossa integridade como nação.
Somente articulando o esforço de crescimento e reinserção internacional ativa com políticas sólidas de emprego, com reformas nas estruturas agrária e urbana, com a ampliação e a reorientação do gasto e dos investimentos públicos nos programas de infra-estrutura e sociais e com políticas progressivas de rendas -que envolvem um conjunto de aspectos, como o salário mínimo, a progressividade tributária, a desoneração dos alimentos básicos, a universalização da Previdência Social pública e dos serviços sociais básicos, entre outros, para citar somente alguns instrumentos-chaves nesse processo- será possível melhorar progressivamente a situação dos segmentos de rendas médias e baixas, eliminar a fome e a miséria e assegurar dignidade e cidadania aos milhões de brasileiros atualmente discriminados ou excluídos dos benefícios do progresso tecnológico.


(*) A desvalorização do real tende a deprimir o PIB em dólares, calculado de acordo com a metodologia do BC (dólar médio). Para as projeções, se assumiu o valor do PIB em julho de 2002 de US$ 450 bilhões e uma população de 170 milhões de habitantes. Em 2022, esses valores seriam de US$ 1,443 trilhão e 207,4 milhões, respectivamente.

Aloizio Mercadante, 48, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, deputado federal por São Paulo e secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores.
Internet:
www.mercadante.com.br
E-mail -
dep.mercadante@camara.gov.br











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