São Paulo, domingo, 20 de outubro de 2002

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ARTIGO/"J'ACCUSE"

Por que o Brasil não vai quebrar

ALEXANDRE SCHWARTSMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Houve poucas vezes em que pude observar tanta discrepância como agora entre as opiniões dos analistas nacionais e estrangeiros em relação ao desfecho mais provável para a crise brasileira. A opinião dos estrangeiros, conforme exemplificada pelas recentes declarações de George Soros, enfatiza a falta de disposição dos investidores estrangeiros em adquirir ativos brasileiros como sendo o motivo de uma iminente reestruturação da dívida, ora a externa, ora a interna, ora as duas. Em outras palavras, os mercados poderiam impor ao governo brasileiro a decisão de reestruturar a dívida simplesmente recusando o seu financiamento.
Os analistas nacionais (eu inclusive) têm opinião bem diferente. Muitos de nós ficamos perplexos com a declaração de que o mercado pode impor uma reestruturação da dívida. Não se encontram em lugar nenhum os passos exatos que levariam de altos "spreads" sobre a dívida soberana para uma inadimplência forçada.
Acredito que esses analistas têm em mente algo parecido com a crise argentina. Isto é, o mercado recusa a rolagem da dívida do governo (sem nem sequer cogitar de novas emissões para financiar o déficit fiscal) e força o governo a declarar moratória. Parece que se pode dizer também, sem medo de errar, que se trata, na verdade, de uma analogia, em vez de um raciocínio bem elaborado sobre uma crise de dívida iminente.
Posso imaginar que muitos leitores devam estar sorrindo sozinhos, pensando que eu vá em seguida lhes apresentar mais uma vez os motivos pelos quais o Brasil não é uma Argentina. Na verdade, deverei seguir um caminho mais ou menos assim. Mas, em vez de destacar as particularidades dos países, deverei mostrar as diferenças entre os regimes de câmbio flutuante e fixo, bem como a natureza da dívida interna e o grau de abertura da conta de capitais.
Com relação à dívida, devo chamar a atenção dos leitores para o fato de que a maior parte (uns 75%) da dívida do governo é liquidada em reais, muito embora uma parcela substancial da dívida interna esteja indexada ao dólar. Isso significa que o governo, que detém o controle do Banco Central, dificilmente poderia ser forçado a uma moratória da dívida interna mesmo no caso extremo (e improvável) de os bancos se recusarem a rolar o débito.
Na prática, o Banco Central pode recomprar a dívida que vence em determinada data e, em seguida, enxugar o excesso de liquidez. Isto é, rolar a dívida no overnight. Isso não é muito agradável, longe disso, e qualquer analista (como eu) formado numa época em que toda a dívida interna era rolada no overnight conhece muito bem os efeitos colaterais negativos dessa alternativa. Mas os custos da reestruturação da dívida seriam muito maiores.
Isso posto, observamos também que, num regime de câmbio flutuante com uma mobilidade imperfeita de capitais, a possibilidade de o sistema bancário recusar a rolagem da dívida interna é muito remota. O regime de câmbio flutuante é um sistema fechado, no sentido exato de que para cada real que sai do país, tem de haver outro real entrando, contanto que o BC não financie uma fuga de capital mediante a venda das reservas. Além disso, considerando os limites à mobilidade de capital do país, o sistema financeiro tem pouca alternativa além de manter a rolagem da dívida.
Com relação à dívida externa soberana (pública), deve-se ter em mente que: 1) é barata; 2) é de longo prazo e 3) as necessidades de financiamento para os próximos 15 ou talvez 27 meses cabem nas reservas em moeda forte existentes, mais ainda se considerarmos as entradas de capital acertadas com o Banco Mundial e pelo BID, sem nem sequer considerar os recursos do FMI. Isto é, o governo brasileiro pode deixar de recorrer aos mercados internacionais de capital pelo menos até o final de 2003, e possivelmente até o final de 2004, contanto que não faça alguma tolice com suas reservas internacionais.
Em vista dessas considerações, seria necessário apresentar argumentos melhores para defender a idéia de uma reestruturação da dívida do governo induzida pelo mercado. Ninguém ainda apresentou tais argumentos. Ademais, acuso aqueles que acreditam ter apresentado argumentos convincentes de terem se baseado em simples analogias, nem sempre fundamentadas, no lugar de uma análise econômica profunda e detalhada. Analogias são mais baratas e mais fáceis, algumas vezes simplesmente erradas, e nunca substituirão uma análise.

SOBRE A DÍVIDA EXTERNA
As necessidades brutas de financiamento do Brasil para 2003, definidas como o déficit em transações correntes para o ano mais os pagamentos de amortização da dívida de médio e longo prazos, devem ficar em US$ 39,7 bilhões.
Mas temos de distinguir entre o setor público e o privado, já que este último tem de cobrir suas necessidades de moeda forte no mercado de câmbio, ao passo que o setor público em geral (embora nem sempre) pode recorrer ao dinheiro guardado nas suas reservas internacionais.
Ainda assim, as necessidades de financiamento para o setor público não-financeiro parecem bem pesadas -US$ 25,2 bi. Mas deve-se notar que também essa cifra deve ser dividida em dois bichos diferentes: o dinheiro que o Brasil deve ao FMI e aquele destinado aos pagamentos relativos à dívida soberana (descontadas as entradas de juros provenientes dos rendimentos das reservas brasileiras). Os juros e a amortização para 2003 sobre o empréstimo do FMI totalizam US$ 16,4 bi, recursos esses que já fazem parte das reservas do país, no montante de US$ 17,3 bi no final de setembro.
Os pagamentos relativos à dívida soberana somam US$ 8,8 bilhões. Decompondo esse número, verificaríamos que os pagamentos de amortização agendados para 2003 estariam em torno de US$ 4,7 bilhões, ao passo que os pagamentos brutos de juros chegariam a US$ 5,9 bilhões, com um total geral de US$ 10,6 bilhões. Mas o Banco Central deverá receber uns US$ 2 bilhões em juros sobre as reservas brasileiras, reduzindo para US$ 8,6 bilhões as despesas líquidas para o serviço da dívida soberana. Acrescentando ao valor para 2003 os US$ 2,3 bi de serviço líquido da dívida até o final de 2002, concluímos que o serviço da dívida soberana (amortização mais juros líquidos) totaliza US$ 10,9 bilhões para os próximos 15 meses, comparado com as reservas internacionais líquidas de US$ 21,1 bilhões.
Conforme o acordo com o FMI, o Banco Central tem de manter reservas líquidas mínimas de US$ 5 bilhões; mas isso ainda deixa uns US$ 16,1 bilhões para o serviço da dívida até o final de 2003, bem acima das necessidades de US$ 10,9 bilhões.
Considerando a necessidade de financiamento não só em 2002 e 2003, mas em 2004 também, chegamos a um valor de US$ 22,9 bi, que pode ser financiado sem recorrer-se aos mercados internacionais de capital, pois há uns US$ 7 bilhões acertados com o Banco Mundial e com o BID, que poderão aumentar as reservas do país. Note-se ainda que não consideramos os recursos do FMI. (1)
Em suma, existem fortes motivos para acreditar que o governo brasileiro pode deixar de recorrer aos mercados internacionais de capital, certamente até o final de 2003, e muito provavelmente em 2004 também.
Isso significa não só que a recusa do mercado internacional em financiar o governo tem pouca importância para o programa de financiamento do Tesouro Nacional para a sua dívida soberana, mas também que os atuais altos custos de endividamento, manifestados pelos grandes spreads, não contaminam o custo médio da dívida soberana, que continua próximo de 8% a 8,5% ao ano, comparado com os custos marginais de 24% a 25% ao ano.
Nesse sentido, nós nos perguntamos o que realmente está por trás de declarações como aquelas feitas por George Soros, nas quais relacionou o custo de endividamento marginal (isto é, o custo no qual o Brasil incorreria se emitisse novos títulos de dívida neste momento) com considerações sobre a solvência da dívida. Se o Brasil tomasse dinheiro às taxas atuais (o que não está fazendo nem precisa fazer durante pelo menos 15 meses), e se isso contaminasse todo o custo da dívida (o que não acontece, porque o grosso da dívida paga taxas muito menores), Soros poderia estar certo. De outra forma, é apenas uma afirmação vazia, revelando uma surpreendente falta de conhecimento da parte de uma pessoa tão rica.
Tudo considerado, a idéia de que o Brasil pudesse ser forçado a uma reestruturação da dívida, porque os investidores não estivessem mais adquirindo papéis da dívida brasileira, é simplesmente errada.
A menos que se tenha a expectativa de que os mercados permaneçam fechados ao Brasil por mais tempo ainda, não há como os mercados imporem uma reestruturação da dívida soberana a um governo relutante.
Por certo, existe um argumento mais sofisticado, que é o seguinte. Embora a atual escassez de capital estrangeiro talvez não imponha uma restrição absoluta na capacidade de pagar a dívida externa, pode assim mesmo levar a uma reestruturação da dívida na esfera interna. A fraqueza da taxa de câmbio elevaria a dívida indexada ao dólar, o que acabaria forçando uma reestruturação da dívida interna e, por motivos políticos, uma medida semelhante em relação à dívida externa. Acredito que isso esteja errado.

SOBRE A DÍVIDA INTERNA
Antes de prosseguirmos para o tema da solvência, que é o tema relevante para tratarmos das considerações sobre a taxa de câmbio, pode ser útil examinar o problema da rolagem e as possibilidades de uma crise relativa à dívida, que seria causada pelo mercado interno ao recusar-se a aceitar papéis do governo.
Devemos notar, em primeiro lugar, que a probabilidade de um problema como esse surgir é muito menor do que parece no momento. Os valores da rolagem da dívida não estão muito altos no momento, mas o problema se concentra, na verdade, na dívida atrelada ao dólar, ao passo que a dívida denominada em reais tem sido rolada inteiramente.
A questão da dívida atrelada ao dólar tem a ver essencialmente com a atual fraqueza do real, que neste momento parece muito acima de qualquer estimativa razoável de um ponto de equilíbrio no curto prazo, sem nem sequer considerar os níveis de equilíbrio no longo prazo. Considerando isso, quase todas as expectativas apontam para alguma valorização da moeda nacional, que se verificaria num horizonte previsível.
Assim, para uma taxa à vista de R$ 3,86/US$ 1 no momento em que este relatório foi escrito, os contratos de futuros de dólar para abril indicam um nível em torno de R$ 3,55/US$ 1, isto é, uma queda de aproximadamente 8% no preço do dólar nos próximos seis meses. Ao mesmo tempo, os contratos de futuros de juros indicam um rendimento sobre ativos domésticos em torno de 24% ao ano. Mesmo assim, considerando a valorização prevista do real, as taxas de juros em instrumentos atrelados ao dólar devem ser mais altas que as observadas em instrumentos em reais.
Para visualizar esse fato, considere uma investidora com R$ 100 hoje: ela pode comprar um instrumento em reais com um rendimento de 24% ao ano por seis meses, recebendo R$ 111,30 ao final do período. Como alternativa, ela poderia comprar um instrumento atrelado ao dólar à cotação de R$ 3,86 hoje e convertê-lo em reais à taxa de R$ 3,55 daqui a seis meses. Para conseguir os mesmos R$ 111,3 do primeiro investimento, necessita de uma taxa de juros de 46% ao ano (21% em 6 meses) sobre o instrumento em dólar.
Isso posto, essas taxas exigidas são, de longe, altas demais para que o Tesouro Nacional as aceite, o que é a causa principal das dificuldades relacionadas à rolagem dos instrumentos domésticos denominados em dólar. Em vez de rolar a dívida em dólar a taxas como essas, o Tesouro tem preferido usar o seu colchão de dinheiro para simplesmente liquidar as suas dívidas dolarizadas.
Mas, dessa forma, deveria ter havido um impacto significativo sobre a oferta de moeda nos últimos meses, já que o dinheiro do Tesouro Nacional vem, na verdade, da sua conta no BC, o que significaria um aumento na base monetária. Mas não foi isso o que aconteceu, pois o excesso de liquidez criado com a decisão de pagar a dívida é normalmente enxugado, quase imediatamente, pelo Banco Central, que vende papéis do governo por um dia em troca do dinheiro retirado do sistema.
De fato, se pensarmos sobre esse assunto, não poderia ser de outra forma. Considerando que o Banco Central estabelece metas para as taxas de juros, qualquer aumento na oferta de moeda além da procura por moeda faz com que as taxas interbancárias caiam a níveis abaixo da meta da taxa Selic. Nessas circunstâncias, o mais provável é que os bancos depositem esses recursos adicionais no Banco Central a fim de receber a taxa-meta Selic, o que está de acordo com o que observamos nos últimos meses.
Em outras palavras, o montante da dívida não rolado pelos canais tradicionais pode ainda ser pago em dinheiro emitido pelo Banco Central (2), sendo depois retirado com operações no overnight, isto é, por meio de compromissos de recompra de um dia nos quais o Banco Central vende um título do governo com um compromisso de recompra para o dia seguinte. Não é por acaso que o saldo desses compromissos, que estava em menos R$ 8,8 bilhões no final de 2001 (indicando que o Banco Central era credor líquido do mercado naquele momento), transformou-se num valor de mais R$ 54,5 bilhões em agosto de 2002, o que significa que o Banco Central passara à posição de tomador líquido.
Isso não é novidade para o país, muito pelo contrário, a novidade é, na verdade, que a vasta maioria da dívida não vem sendo rolada por esse canal. De fato, até uns seis anos atrás, quase toda a dívida era financiada por meio de recompras no overnight, e não é tão difícil imaginar que uma parcela maior da dívida poderia seguir esse rumo também.
Dito isso, o acúmulo de dívida no overnight significa obviamente um custo, porque se torna um substituto mais próximo para dinheiro (3) e necessitaria tipicamente (tudo mais sendo constante) ou de um esforço maior na frente monetária, ou de uma política fiscal mais apertada, ou de uma combinação dos dois, para produzir uma determinada meta inflacionária.
Como alternativa, a mesma combinação de políticas fiscal e monetária poderia levar a uma inflação mais alta. Acontece, entretanto, que uma enorme massa de liquidez, que poderia se transformar em demanda adicional por ativos reais ou por moeda estrangeira num período muito curto, não constitui um quadro muito bonito, para dizer o mínimo. Ainda assim, tais custos parecem bem menores em comparação com os da alternativa de reestruturação da dívida.
Note-se que o sistema financeiro não tem alternativas aos títulos do governo. Isso pode parecer em desacordo com a experiência diária, já que qualquer um pode, de fato, liquidar sua posição em títulos do governo e comprar outros ativos, tais como imóveis ou moeda estrangeira. Mesmo assim, o sistema consolidado não consegue fazê-lo, e não é muito difícil discernir por que isso acontece.
O sistema como um todo não pode vender sua posição em instrumentos da dívida, a menos que venda a um comprador fora do próprio sistema (o Banco Central) ou espere até o vencimento. Mesmo assim, para efeito de argumentação, suponhamos que o Banco Central recompre LFTs dos bancos ou de fundos mútuos e depois os antigos detentores desses títulos decidam comprar ativos reais ou moeda estrangeira.
Se comprarem ativos reais, aquele que vendeu os ativos tem agora dinheiro, que acabará retornando ao setor financeiro. Da mesma forma, se alguém comprar dólares, contanto que estes não sejam adquiridos do Banco Central, há necessariamente outro que lhe vendeu a moeda estrangeira e que é agora um feliz detentor de moeda nacional, a qual, novamente, tem de retornar ao setor financeiro. Uma vez que o dinheiro tiver chegado aos bancos, o mesmo raciocínio acima se aplica: ou os bancos retêm o dinheiro ocioso nos seus cofres, ou o depositam no Banco Central na base de overnight.
Compare este último caso com o que teria ocorrido no caso de o regime cambial ser de taxas fixas. Em tal caso, o Banco Central teria fornecido os dólares e a moeda nacional teria desaparecido para dentro dos cofres do Banco Central, o que significa que o sistema como um todo poderia ter encontrado um meio de sair do país.
Sob um regime de taxas flutuantes, entretanto, isso já não é possível: o dinheiro permanece no sistema e, enquanto está lá (4), os bancos não teriam qualquer alternativa no fim do dia (literalmente, neste caso), a não ser depositar este dinheiro no Banco Central para retomá-lo no dia seguinte.
(Continua na página seguinte)


1. Note-se que, nos meus cálculos, não considerei a dívida que já pode ter sido paga sob o programa de recompra lançado nos primeiros meses de 2002. É possível, portanto, que o serviço efetivo da dívida seja inferior aos valores que temos aqui.
2. Note-se que toda a dívida doméstica é paga em moeda nacional. Mesmo os títulos atrelados ao dólar são liquidados em reais, não em dólares, uma moeda que permanece monopólio do Banco Central.
3. Sobre esse assunto recomendo ler um ensaio recente de Persio Arida: "Financially indexed debt and inflation targeting: an expository note" (2002). Na verdade, esta é uma primeira versão do ensaio, sendo que existem versões mais recentes em português.
4. Somente uma corrida contra os bancos tornaria inválido esse argumento.


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