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OPINIÃO ECONÔMICA
Assentamentos, desarmar a lógica destrutiva
RICARDO ABRAMOVAY
A distribuição de ativos para populações vivendo em situação de pobreza é a mais importante premissa para a sua emancipação social. O pensamento econômico dos anos 90 reúne imensa
quantidade de trabalhos que mostram que a capacidade de o crescimento econômico reduzir a pobreza é tanto menor quanto maior a
desigualdade das sociedades em
que ele ocorre. Talvez a maior
preocupação do processo de desenvolvimento atual esteja em juntar os dois termos que, convencionalmente, a economia coloca como
antagônicos: eqüidade e eficiência.
O acesso à terra é uma fantástica
oportunidade nesse sentido. Sua
premissa básica é que unidades
produtivas ao alcance das capacidades de trabalho de uma família
podem afirmar-se economicamente e ser, portanto, um fator de geração sustentável de renda. É claro
que, para isso, são necessárias condições de acesso a mercados dinâmicos, a crédito, a informações, a
educação e a tecnologias.
Os dilemas enfrentados pela política nacional de assentamentos originam-se na maneira como os atores concebem e executam as condições em que são ou deveriam ser
atribuídos esses recursos às populações beneficiárias. As instituições
-as normas, os valores, as expectativas, os modelos mentais e, sobretudo, as configurações de interesses e relações- dessa área adquiriram um certo formato organizacional que joga os governos e os
movimentos em impasses dos
quais não têm como sair e cujo resultado social é destrutivo.
Um paralelo talvez permita organizar os critérios que devem
pautar essa discussão. As melhores organizações de microcrédito
urbano orgulham-se não só por
fazer chegar os recursos de que
dispõem aos mais pobres mas, sobretudo, que esses recursos sejam
devolvidos e que eles sirvam, de
fato, para reduzir a pobreza.
Essas organizações constroem-se com base numa espécie de cadeia de responsabilidades: o tomador do empréstimo sabe que o
não-pagamento terá conseqüências não só quanto a sua imagem
na comunidade em que vive mas
na agência que lhe emprestou o dinheiro. O agente de crédito também tem seu desempenho -capacidade de emprestar, de receber
e de acompanhar o que fazem as
famílias- monitorado de perto. E
a organização como um todo faz
esforços para reduzir seus custos,
para aumentar sua eficiência e para que seus ganhos de produtividade (quantidade de tomadores
por agente de crédito) revertam
em benefício dos tomadores. O
atendimento a uma necessidade
social -crédito para quem não
consegue chegar ao sistema bancário- é feito em condições que
procuram respeitar as exigências
da racionalidade econômica.
O processo brasileiro de assentamentos nunca se apoiou numa
cultura de avaliação. Contrariamente ao que ocorre, por exemplo, no microcrédito urbano, suas
instituições não contemplam e
não valorizam as responsabilidades dos indivíduos em toda a sua
cadeia de realizações, do acampado ao Incra. O processo de assentamentos está pautado por uma
exigência justa, mas que contém
perigosa armadilha: é necessário
atribuir um conjunto de fatores
aos que estão em situação de pobreza para que possam melhorar
sua situação social. Mas ele não sinaliza aos atores que os recursos
para essa atribuição são escassos e,
sobretudo, que ela deve apoiar-se
em contrapartidas, compromissos
e responsabilidades.
A única avaliação a que parece
submeter-se o processo é a mais
destrutiva e se traduz na guerra de
números da qual o atual governo
não conseguiu escapar. Tudo se
passa como se o sucesso do sistema dependesse da quantidade de
trabalhadores assentados. Por aí
se produz uma dinâmica perversa:
os movimentos sociais estimulam
acampamentos e acenam, evidentemente, aos acampados o horizonte de que o resultado de seus
sacrifícios será compensado pela
obtenção da terra. O acampamento hoje é vivido, por seus participantes, com base no cálculo do
custo de oportunidade de viver
sob a lona em contraposição a ganhos minguados na condição de
diarista. Viver sob a lona é compensador pelo horizonte de obter
terra. Essa dinâmica impede que o
processo de seleção das famílias
responda a critérios de qualidade.
Pior: se apóia na certeza de que a
terra não terá que ser paga e, portanto, induz a que seja vivida pelos
beneficiários antes de tudo como
patrimônio, e não como base produtiva. A alta evasão dos assentamentos deve ter alguma relação
com essa dinâmica perversa.
É claro que os movimentos sociais desejam que a terra seja um
elemento produtivo e se esforçam
ao máximo para isso. Não há dúvida também de que são muitos
os assentamentos que conseguem
uma significativa inserção local.
Mas o processo atual não contém
mecanismos de incentivo que
condicionem a atribuição das terras às possibilidades de que os resultados dos assentamentos sejam, presumivelmente, positivos.
Muitas vezes o são. Mas não há
uma cadeia de responsabilidades
pela qual se possa entender as razões de tantos casos malsucedidos. O diagnóstico costuma ser
sempre o mesmo: o insucesso se
deve ao fato de o governo não ter
feito o que lhe competia. É um
diagnóstico equivocado e que
conduz a uma forma de ação suicida para todas as partes. A lógica
não pode ser a de assentar e pressionar para que o governo faça o
que, em tese, lhe compete.
Uma lógica construtiva deveria
nortear-se por uma nova contratualização do processo: a implantação do assentamento e seus resultados seriam avaliados, e os
produtos trariam conseqüências
para os atores. Não se pode subestimar a importância dos movimentos e das organizações nessa
luta estratégica. Mas hoje os beneficiários (as famílias) não têm responsabilidade: os movimentos
são mais do que representantes
organizados das famílias. Eles são
os protagonistas de um contrato
do qual as famílias estão virtualmente ausentes. Esse formato é
uma fonte de conflitos e inibe as
capacidades e as responsabilidades das próprias famílias. Pior:
impede que a sociedade possa saber se o uso dos recursos para assentar foi o melhor meio de consagrar seus esforços na luta contra
a pobreza.
Ricardo Abramovay, 51, professor titular do Departamento de Economia da
FEA e do Programa de Pós-Graduação
em Ciência Ambiental da USP, é organizador de "Laços Financeiros na Luta contra a Pobreza" (Annablume/Fapesp,
2004).
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