São Paulo, quarta-feira, 20 de outubro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Assentamentos, desarmar a lógica destrutiva

RICARDO ABRAMOVAY

A distribuição de ativos para populações vivendo em situação de pobreza é a mais importante premissa para a sua emancipação social. O pensamento econômico dos anos 90 reúne imensa quantidade de trabalhos que mostram que a capacidade de o crescimento econômico reduzir a pobreza é tanto menor quanto maior a desigualdade das sociedades em que ele ocorre. Talvez a maior preocupação do processo de desenvolvimento atual esteja em juntar os dois termos que, convencionalmente, a economia coloca como antagônicos: eqüidade e eficiência.
O acesso à terra é uma fantástica oportunidade nesse sentido. Sua premissa básica é que unidades produtivas ao alcance das capacidades de trabalho de uma família podem afirmar-se economicamente e ser, portanto, um fator de geração sustentável de renda. É claro que, para isso, são necessárias condições de acesso a mercados dinâmicos, a crédito, a informações, a educação e a tecnologias.
Os dilemas enfrentados pela política nacional de assentamentos originam-se na maneira como os atores concebem e executam as condições em que são ou deveriam ser atribuídos esses recursos às populações beneficiárias. As instituições -as normas, os valores, as expectativas, os modelos mentais e, sobretudo, as configurações de interesses e relações- dessa área adquiriram um certo formato organizacional que joga os governos e os movimentos em impasses dos quais não têm como sair e cujo resultado social é destrutivo.
Um paralelo talvez permita organizar os critérios que devem pautar essa discussão. As melhores organizações de microcrédito urbano orgulham-se não só por fazer chegar os recursos de que dispõem aos mais pobres mas, sobretudo, que esses recursos sejam devolvidos e que eles sirvam, de fato, para reduzir a pobreza.
Essas organizações constroem-se com base numa espécie de cadeia de responsabilidades: o tomador do empréstimo sabe que o não-pagamento terá conseqüências não só quanto a sua imagem na comunidade em que vive mas na agência que lhe emprestou o dinheiro. O agente de crédito também tem seu desempenho -capacidade de emprestar, de receber e de acompanhar o que fazem as famílias- monitorado de perto. E a organização como um todo faz esforços para reduzir seus custos, para aumentar sua eficiência e para que seus ganhos de produtividade (quantidade de tomadores por agente de crédito) revertam em benefício dos tomadores. O atendimento a uma necessidade social -crédito para quem não consegue chegar ao sistema bancário- é feito em condições que procuram respeitar as exigências da racionalidade econômica.
O processo brasileiro de assentamentos nunca se apoiou numa cultura de avaliação. Contrariamente ao que ocorre, por exemplo, no microcrédito urbano, suas instituições não contemplam e não valorizam as responsabilidades dos indivíduos em toda a sua cadeia de realizações, do acampado ao Incra. O processo de assentamentos está pautado por uma exigência justa, mas que contém perigosa armadilha: é necessário atribuir um conjunto de fatores aos que estão em situação de pobreza para que possam melhorar sua situação social. Mas ele não sinaliza aos atores que os recursos para essa atribuição são escassos e, sobretudo, que ela deve apoiar-se em contrapartidas, compromissos e responsabilidades.
A única avaliação a que parece submeter-se o processo é a mais destrutiva e se traduz na guerra de números da qual o atual governo não conseguiu escapar. Tudo se passa como se o sucesso do sistema dependesse da quantidade de trabalhadores assentados. Por aí se produz uma dinâmica perversa: os movimentos sociais estimulam acampamentos e acenam, evidentemente, aos acampados o horizonte de que o resultado de seus sacrifícios será compensado pela obtenção da terra. O acampamento hoje é vivido, por seus participantes, com base no cálculo do custo de oportunidade de viver sob a lona em contraposição a ganhos minguados na condição de diarista. Viver sob a lona é compensador pelo horizonte de obter terra. Essa dinâmica impede que o processo de seleção das famílias responda a critérios de qualidade. Pior: se apóia na certeza de que a terra não terá que ser paga e, portanto, induz a que seja vivida pelos beneficiários antes de tudo como patrimônio, e não como base produtiva. A alta evasão dos assentamentos deve ter alguma relação com essa dinâmica perversa.
É claro que os movimentos sociais desejam que a terra seja um elemento produtivo e se esforçam ao máximo para isso. Não há dúvida também de que são muitos os assentamentos que conseguem uma significativa inserção local. Mas o processo atual não contém mecanismos de incentivo que condicionem a atribuição das terras às possibilidades de que os resultados dos assentamentos sejam, presumivelmente, positivos. Muitas vezes o são. Mas não há uma cadeia de responsabilidades pela qual se possa entender as razões de tantos casos malsucedidos. O diagnóstico costuma ser sempre o mesmo: o insucesso se deve ao fato de o governo não ter feito o que lhe competia. É um diagnóstico equivocado e que conduz a uma forma de ação suicida para todas as partes. A lógica não pode ser a de assentar e pressionar para que o governo faça o que, em tese, lhe compete.
Uma lógica construtiva deveria nortear-se por uma nova contratualização do processo: a implantação do assentamento e seus resultados seriam avaliados, e os produtos trariam conseqüências para os atores. Não se pode subestimar a importância dos movimentos e das organizações nessa luta estratégica. Mas hoje os beneficiários (as famílias) não têm responsabilidade: os movimentos são mais do que representantes organizados das famílias. Eles são os protagonistas de um contrato do qual as famílias estão virtualmente ausentes. Esse formato é uma fonte de conflitos e inibe as capacidades e as responsabilidades das próprias famílias. Pior: impede que a sociedade possa saber se o uso dos recursos para assentar foi o melhor meio de consagrar seus esforços na luta contra a pobreza.


Ricardo Abramovay, 51, professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP, é organizador de "Laços Financeiros na Luta contra a Pobreza" (Annablume/Fapesp, 2004).


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