São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS
Tecnologias escravizam e destroem o caráter

GILSON SCHWARTZ
da Equipe de Articulistas

As ondas de fusões e aquisições das últimas semanas deixam um rastro de sangue impressionante: as demissões são anunciadas sempre na casa dos milhares.
Em tese, novas tecnologias estariam abrindo novas frentes de "empregabilidade" (a palavra da moda). Mas, a julgar pelo debate recente sobre os efeitos da tecnologia sobre o emprego, não há motivos para esperança.
Completando o quadro desanimador, especialistas começam a admitir que investir em educação está longe de ser uma condição decisiva de "empregabilidade".
O acesso à educação ampliou-se brutalmente nos últimos anos, nos Estados Unidos, enquanto a desigualdade na distribuição de renda continuou aumentando e a qualidade dos empregos piorou para contingentes significativos da população. Em países menos desenvolvidos, como o Brasil, a ponte entre educação e trabalho é ainda mais estreita.
Toda crítica às novas tecnologias é rapidamente classificada como "neoludita" (referência ao movimento ludita que, em 1811, reagia à introdução de máquinas nas fábricas têxteis inglesas).
Nessa barafunda são incluídos tanto o Unabomber quanto o movimento sindical. Levando em conta o fato de que nada ou ninguém até hoje foi capaz de deter o avanço tecnológico, o "neoludismo" parece condenado a ser mais uma nota de rodapé.
Mas as críticas têm aumentado e ganham cada vez mais consistência e profundidade, ainda que seja só para fazer o registro do "outro lado" e ao menos dar chance às pessoas de se acautelarem contra a euforia tecnológica.
Algumas tendências têm mudado com enorme rapidez. O desenvolvimento do espaço virtual, por exemplo, começou cercado de glamour, exigia conhecimentos de informática e parecia abrir amplas possibilidades de emprego e renda elevada.
O desenvolvimento de conteúdo para a Internet chegou até a animar a recuperação de uma área de Nova York, batizada de "silicon alley" (alameda do silício), em contraposição ao "silicon valley" (vale do silício, na Califórnia, pólo de desenvolvimento de máquinas e software).
Praticamente em dois anos, entretanto, ocorreu uma "commoditização" (ou seja, vulgarização mercantil em larga escala) do que parecia um misto de empregabilidade e alta cultura. A cena foi descrita num belo ensaio ("The Case of Silicon Alley") publicado no número 25 da revista 21*C (http:// www.21c.worldideas.com). Seu ponto de partida é a divulgação de um anúncio de seleção que pedia "escravos com habilidade em HTML" (a linguagem com que se montam as páginas da Internet).
Curiosamente, as condições de trabalho nessa fronteira da tecnologia atual não apenas se assemelham às que se encontram em oficinas têxteis de baixa qualificação, como, em Nova York, os dois mundos aparentemente tão distantes às vezes estão muito próximos até fisicamente. A revista "Wired", um ícone dos tempos virtuais, dividia espaço num prédio com empresas do setor têxtil.
A virtual escravização do novo trabalhador supostamente qualificado e supereducado estaria associada ainda à perda de caráter. Esse é o tema do livro mais recente de Richard Sennett, um respeitado sociólogo da Universidade de Nova York ("The Corrosion of Character, The Personal Consequences of Work in the New Capitalism").
A tão propalada flexibilidade nas relações trabalhistas estaria obrigando os indivíduos a um desligamento social que culmina com a incapacidade de perceber o tempo e conceber o futuro.
A reengenharia estaria criando monstruosidades psicológicas e pessoais tão ou mais perversas que aquelas produzidas pelo mundo burocratizado das estruturas industriais fordistas.
Há sintomas dessa destruição por todos os lados: das tirinhas de Dilbert (onde os supostos valores da boa administração de pessoal criam um ambiente de trabalho sem ética) ao sucesso editorial de manuais que prometem a redescoberta das emoções em meio à revolução tecnológica (tipo "Inteligência Emocional").
Sem Marx nem Freud, o flexível trabalhador do futuro não terá do que se libertar.




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