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VISÃO DE FORA
Combate à narcoeconomia
PIERRE SALAMA
No instante em que o Brasil
parece cada vez mais afetado pelo processo de refinamento e comercialização das drogas, tornando-se uma das novas "rotas"
rumo aos países desenvolvidos,
cabe indagar a importância dessa nova atividade e os problemas
que ela suscita. A questão é grave
e exige uma resposta incisiva. Na
América Latina, embora o tráfico seja marcante, o que sabemos
sobre ele encontra-se cercado de
dúvidas e assume muitas vezes
um caráter folclórico; o comportamento dos traficantes, em geral, é pouco conhecido, e as possibilidades de mudanças são de difícil avaliação.
Difícil, principalmente, porque
se trata de produtos cuja produção, refinamento e comercialização são ilícitos. Não bastasse isso, as formas de comercialização,
nos diferentes estágios, inserem-
se num conjunto de atividades
informais, que lhes dá suporte e
lhes confere o aspecto de redes
móveis, multifacetadas, longe da
imagem passada pela imprensa
quando fala desse ou daquele
cartel.
Paradoxalmente, pode-se obter
uma avaliação macroeconômica
bastante acurada das drogas e
do capital movimentado por essa
atividade criminosa. Segundo
técnicas que cruzam as estimativas da oferta e da demanda, calcula-se que, nos EUA, houve um
consumo de 244 toneladas (estimativa baixa) a 311 toneladas
(estimativa alta) em 1988, estimativa bem mais modesta do
que aquela repetida à exaustão
pela imprensa, cujo cálculo do
tráfico mundial supera os US$
500 bilhões (US$ 300 bilhões só
nos EUA), sendo a cocaína responsável por um terço desse total. Dividido pelo preço no atacado em vigor naquela época
(cerca de US$ 40 mil o quilo), o
consumo de cocaína teria sido de
2.500 toneladas; dividido pelo
preço no varejo, teria sido de
mais de 800 toneladas (!), o que
supera em muito as estimativas
de consumo realizadas periodicamente.
Quando levamos em consideração o consumo de outros países
e acrescentamos os confiscos, a
média das exportações mundiais
foi de 571 toneladas no período
de 1988 a 1993. O consumo mundial médio de cocaína, de 1988 a
1993, gira em torno de 265 toneladas, e os confiscos, em torno de
294 toneladas; as exportações totais, nesse período, são estimadas em 571 toneladas, na média.
Duas conclusões podem ser tiradas desse quadro. A primeira:
o consumo de cocaína tende a
baixar nos EUA, acompanhado
de uma acentuada queda no preço. A segunda: os confiscos são
bastante elevados, infinitamente
maiores do que as estimativas
geralmente adotadas, já que, em
média, eles alcançam 90% do
consumo mundial e chegam a
quase 50% da produção de todo
o globo.
O comportamento econômico
dos traficantes, como dissemos, é
pouco conhecido. A questão fundamental é saber se as organizações mafiosas podem comportar-
se como empresas comuns ou, ao
contrário, se elas permanecem
profundamente marcadas pelas
suas origens. É comum encontrar
na literatura referências à dimensão relativamente pequena
das organizações criminosas e à
sua articulação em rede. A atividade produtiva possui uma dimensão reduzida porque ela é
pouco suscetível a economias
hierarquizadas, tanto no nível
da cultura da papoula ou da folha de coca quanto no de seu refinamento. A dimensão das empresas dependerá sobretudo desse fato, cujo propósito é reduzir
os riscos ao máximo.
Aliás, o quadro muda completamente de feição quando nos situamos no nível de produção, refinamento e venda por atacado
ou naquele da venda a varejo.
Nem os problemas materiais enfrentados, nem a informação
quanto ao risco, nem as possibilidades, enfim, de contorná-lo pela corrupção são idênticos. Como
fica evidente, essas organizações
são altamente instáveis, pois os
contratos firmados podem dar
lugar a embustes sem que uma
instância neutra possa arbitrá-
los, havendo ainda o risco de
confiscos (substanciais) das mercadorias e a ameaça de desmantelamento da hierarquia criminosa. Instáveis, tais empresas geram corrupção e violência em
proporções gigantescas.
Nesse sentido, a lavagem de dinheiro é uma atividade de importância fundamental para as
organizações criminosas. Em geral, tal lavagem é facilitada
quando reina uma economia informal, onde os aparelhos estatais são extremamente sensíveis
à corrupção e os funcionários
buscam o enriquecimento pessoal ou o financiamento ilícito
de seus partidos políticos.
A lavagem efetua-se prioritariamente em certos setores, como
turismo (restaurantes, hotelaria,
cassinos); especulação imobiliária e compra de imóveis (pois a
regulamentação sobre a origem
dos fundos costuma ser bastante
condescendente); indústria farmacêutica (pois esta permite a
aquisição, sem muitos riscos, de
produtos químicos necessários
ao refino da matéria- prima);
empresas localizadas em setores
nos quais é grande a possibilidade de falsificar e deturpar balanços; e atividades de prestação de
serviços (bancos, sociedades
anônimas etc.).
O arsenal de empresas à margem da atividade diretamente
ilícita possui, assim, duas lógicas: uma de reprodução clássica
do capital e outra de lavagem de
dinheiro. Essas duas atividades
são complementares até certo
grau, e seria um erro pensar que
a primeira possa substituir integralmente a outra, pois ambas
repousam sobre duas maneiras
opostas de solucionar os conflitos: a lei e a violência.
Como ambas não podem coexistir por muito tempo sem exercer influência uma sobre a outra,
chegamos a um dilema: ou a empresa terá de abandonar seu estatuto mafioso ou ela o conservará, gangrenando a aplicação da
lei pela violência da corrupção
ou, mais diretamente, pelo desforço físico.
Das duas possibilidades, a segunda tem maiores probabilidades de triunfar: quando o enriquecimento decorre de uma renda ilícita e da capacidade de se
inscrever no circuito dessa renda, é muito difícil deixar de lado
esse maná em proveito de um
enriquecimento menos lucrativo, fruto da organização e da exploração da força de trabalho
-ou seja, do lucro.
Assim, pode-se considerar pouco provável a mutação de empresários mafiosos em donos de atividades lícitas, no espaço de uma
única geração. Ao contrário, os
efeitos corrosivos e destruidores
do surto de uma economia mafiosa sobre a economia e a democracia, jovem e ameaçada, são
reais. Com o impulso da narcoeconomia e da violência que a
acompanha, a economia e a sociedade desagregam-se. A esperança para 1999 é que esse impulso seja refreado.
²
Tradução de
José Marcos Macedo
²
²
Quem é
PIERRE SALAMA
economista francês, especialista em América Latina, é professor da Universidade de
Paris-13 e integrante do Grupo de Pesquisa sobre Estado, Internacionalização de
Técnicas e Desenvolvimento.
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