São Paulo, domingo, 20 de dezembro de 1998

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VISÃO DE FORA
Combate à narcoeconomia

PIERRE SALAMA

No instante em que o Brasil parece cada vez mais afetado pelo processo de refinamento e comercialização das drogas, tornando-se uma das novas "rotas" rumo aos países desenvolvidos, cabe indagar a importância dessa nova atividade e os problemas que ela suscita. A questão é grave e exige uma resposta incisiva. Na América Latina, embora o tráfico seja marcante, o que sabemos sobre ele encontra-se cercado de dúvidas e assume muitas vezes um caráter folclórico; o comportamento dos traficantes, em geral, é pouco conhecido, e as possibilidades de mudanças são de difícil avaliação.
Difícil, principalmente, porque se trata de produtos cuja produção, refinamento e comercialização são ilícitos. Não bastasse isso, as formas de comercialização, nos diferentes estágios, inserem- se num conjunto de atividades informais, que lhes dá suporte e lhes confere o aspecto de redes móveis, multifacetadas, longe da imagem passada pela imprensa quando fala desse ou daquele cartel.
Paradoxalmente, pode-se obter uma avaliação macroeconômica bastante acurada das drogas e do capital movimentado por essa atividade criminosa. Segundo técnicas que cruzam as estimativas da oferta e da demanda, calcula-se que, nos EUA, houve um consumo de 244 toneladas (estimativa baixa) a 311 toneladas (estimativa alta) em 1988, estimativa bem mais modesta do que aquela repetida à exaustão pela imprensa, cujo cálculo do tráfico mundial supera os US$ 500 bilhões (US$ 300 bilhões só nos EUA), sendo a cocaína responsável por um terço desse total. Dividido pelo preço no atacado em vigor naquela época (cerca de US$ 40 mil o quilo), o consumo de cocaína teria sido de 2.500 toneladas; dividido pelo preço no varejo, teria sido de mais de 800 toneladas (!), o que supera em muito as estimativas de consumo realizadas periodicamente.
Quando levamos em consideração o consumo de outros países e acrescentamos os confiscos, a média das exportações mundiais foi de 571 toneladas no período de 1988 a 1993. O consumo mundial médio de cocaína, de 1988 a 1993, gira em torno de 265 toneladas, e os confiscos, em torno de 294 toneladas; as exportações totais, nesse período, são estimadas em 571 toneladas, na média.
Duas conclusões podem ser tiradas desse quadro. A primeira: o consumo de cocaína tende a baixar nos EUA, acompanhado de uma acentuada queda no preço. A segunda: os confiscos são bastante elevados, infinitamente maiores do que as estimativas geralmente adotadas, já que, em média, eles alcançam 90% do consumo mundial e chegam a quase 50% da produção de todo o globo.
O comportamento econômico dos traficantes, como dissemos, é pouco conhecido. A questão fundamental é saber se as organizações mafiosas podem comportar- se como empresas comuns ou, ao contrário, se elas permanecem profundamente marcadas pelas suas origens. É comum encontrar na literatura referências à dimensão relativamente pequena das organizações criminosas e à sua articulação em rede. A atividade produtiva possui uma dimensão reduzida porque ela é pouco suscetível a economias hierarquizadas, tanto no nível da cultura da papoula ou da folha de coca quanto no de seu refinamento. A dimensão das empresas dependerá sobretudo desse fato, cujo propósito é reduzir os riscos ao máximo.
Aliás, o quadro muda completamente de feição quando nos situamos no nível de produção, refinamento e venda por atacado ou naquele da venda a varejo. Nem os problemas materiais enfrentados, nem a informação quanto ao risco, nem as possibilidades, enfim, de contorná-lo pela corrupção são idênticos. Como fica evidente, essas organizações são altamente instáveis, pois os contratos firmados podem dar lugar a embustes sem que uma instância neutra possa arbitrá- los, havendo ainda o risco de confiscos (substanciais) das mercadorias e a ameaça de desmantelamento da hierarquia criminosa. Instáveis, tais empresas geram corrupção e violência em proporções gigantescas.
Nesse sentido, a lavagem de dinheiro é uma atividade de importância fundamental para as organizações criminosas. Em geral, tal lavagem é facilitada quando reina uma economia informal, onde os aparelhos estatais são extremamente sensíveis à corrupção e os funcionários buscam o enriquecimento pessoal ou o financiamento ilícito de seus partidos políticos.
A lavagem efetua-se prioritariamente em certos setores, como turismo (restaurantes, hotelaria, cassinos); especulação imobiliária e compra de imóveis (pois a regulamentação sobre a origem dos fundos costuma ser bastante condescendente); indústria farmacêutica (pois esta permite a aquisição, sem muitos riscos, de produtos químicos necessários ao refino da matéria- prima); empresas localizadas em setores nos quais é grande a possibilidade de falsificar e deturpar balanços; e atividades de prestação de serviços (bancos, sociedades anônimas etc.).
O arsenal de empresas à margem da atividade diretamente ilícita possui, assim, duas lógicas: uma de reprodução clássica do capital e outra de lavagem de dinheiro. Essas duas atividades são complementares até certo grau, e seria um erro pensar que a primeira possa substituir integralmente a outra, pois ambas repousam sobre duas maneiras opostas de solucionar os conflitos: a lei e a violência.
Como ambas não podem coexistir por muito tempo sem exercer influência uma sobre a outra, chegamos a um dilema: ou a empresa terá de abandonar seu estatuto mafioso ou ela o conservará, gangrenando a aplicação da lei pela violência da corrupção ou, mais diretamente, pelo desforço físico.
Das duas possibilidades, a segunda tem maiores probabilidades de triunfar: quando o enriquecimento decorre de uma renda ilícita e da capacidade de se inscrever no circuito dessa renda, é muito difícil deixar de lado esse maná em proveito de um enriquecimento menos lucrativo, fruto da organização e da exploração da força de trabalho -ou seja, do lucro.
Assim, pode-se considerar pouco provável a mutação de empresários mafiosos em donos de atividades lícitas, no espaço de uma única geração. Ao contrário, os efeitos corrosivos e destruidores do surto de uma economia mafiosa sobre a economia e a democracia, jovem e ameaçada, são reais. Com o impulso da narcoeconomia e da violência que a acompanha, a economia e a sociedade desagregam-se. A esperança para 1999 é que esse impulso seja refreado.
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Tradução de José Marcos Macedo
² ² Quem é PIERRE SALAMA economista francês, especialista em América Latina, é professor da Universidade de Paris-13 e integrante do Grupo de Pesquisa sobre Estado, Internacionalização de Técnicas e Desenvolvimento.



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