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OPINIÃO ECONÔMICA
Um drible do destino
RUBENS RICUPERO
As aventuras políticas como a que se tentou em Caracas levam, às vezes, dribles da
própria incompetência e acabam
marcando gol contra. Ficou patente a hipocrisia dos governos e
órgãos de imprensa cujo açodamento em aplaudir o golpe gorado mostrou que sua defesa da democracia é seletiva: só lhes agrada se coincide com seus interesses
de classe ou preferências ideológicas. A estupidez da direita venezuelana confundiu o que era uma
reação compreensível contra os
erros e excessos do populismo como se tratasse de um mandato
que lhe dava o povo para abolir a
Constituição e dissolver a assembléia eleita. A pronta reação popular e a condenação inequívoca
dos países latino-americanos -e,
quanto mais clara e categórica,
melhor- foram passos na direção de "verdade em construção"
em que gostaríamos de crer: a de
que as soluções golpistas e militares estão em via de se tornarem
impensáveis como saídas para
nossos impasses. Ao mesmo título
que, no extremo oposto, o fim do
comunismo tornou inviável a solução alternativa da revolução,
mesmo na versão original de
Chávez. Na Argentina, como na
Venezuela, ao contrário do que
ocorria no passado, não existe outra saída real que não seja a da
via democrática -por mais difícil que pareça o consenso.
A reviravolta dessa autêntica
"journée de dupes" desenrola-se
contra o pano de fundo da crescente desintegração dos sistemas
políticos tradicionais e do fracasso econômico e social em alguns
países do continente. Até agora,
contudo, os episódios de paroxismo tinham encontrado desafogo
em canais institucionais: o "impeachment" de Collor e, na Venezuela, o de Carlos Andrés Perez, o
afastamento de Bucaram e de
Mahuad, no Equador, a renúncia
de Fujimori e de De la Rúa. Era a
primeira vez que nos defrontávamos com um inconfundível golpe
militar, ainda que lembrando a
versão brasileira de 1964, isto é, a
intervenção das Forças Armadas
após a mobilização das classes
médias e da imprensa. Foi crucial, portanto, que o golpe tenha
sido abortado rapidamente a fim
de não criar perigoso e contagioso
precedente. A mensagem que afinal prevaleceu em meio à confusão dos acontecimentos foi a de
que, nas condições latino-americanas atuais, o mais provável, em
intentos similares, é que os golpistas "no pasarán".
Cada fiasco golpista consolida
um pouco mais a convicção de
que só o exercício purificador da
democracia há de permitir, pela
tentativa e erro, o amadurecimento e a evolução transformadora do sistema político. Não foi
só na América Latina que essa
evolução se acelerou e aprofundou de forma radical nas últimas
décadas. Basta pensar na traumática chegada ao poder do general De Gaulle durante a guerra
da Argélia e como ele operou em
pouco tempo uma radical reforma das instituições francesas. Ou
no processo pelo qual a investigação do escândalo de "Mani Pulite" pôs abaixo o regime de pós-guerra, inaugurando a Segunda
República na Itália. A diferença é
que, na Europa, a mudança política se beneficia de quadro econômico e social favorável, enquanto,
na América Latina, as dificuldades institucionais e os dilemas políticos são frequentemente a expressão direta da incapacidade
de encaminhar soluções eficazes
às frustrações de economias estagnadas e de sociedades polarizadas pelo empobrecimento, pelo
desemprego em massa e pela desigualdade chocante e intolerável.
Cada caso é um caso e, mesmo
em nosso continente, não se justificam conclusões indiscriminadas. Partindo do melhor para o
pior, talvez se possa afirmar que o
Chile baliza a ponta mais positiva
da escala, ao passo que a Argentina e a Colômbia representam os
exemplos extremos de descrédito
quase completo de todas as instituições da democracia representativa ou de sua destruição progressiva e sistemática pela luta
armada e pelo efeito desmoralizador do narcotráfico. O sistema
político-partidário chileno é possivelmente o único a ter atravessado mais ou menos intacto a ditadura militar, renovando-se a
ponto de hoje o Partido Socialista,
do presidente Lagos, nada conservar do radicalismo de Allende. O
México, por seu lado, vem conseguindo cumprir, sem traumas, a
transição para a alternância regular do poder, que, guardadas as
proporções, é comparável ao desmantelamento dos regimes de
partidos únicos da URSS e da Europa ocidental.
Em matéria de desintegração
do sistema político e social, as situações mais assustadoras coincidem geralmente com um nível
quase terminal de corrupção e incompetência do governo, do Congresso e do Judiciário e com a
pauperização generalizada da
população. O que acabou, no entanto, por desencadear o processo
desintegrador em países como a
Venezuela, em 1992, e a Argentina, em 2001, foi a aplicação desumana de política de ajustamento
econômico particularmente destrutiva. Tanto esses governos como o FMI subestimaram o risco
de que, incidindo sobre estrutura
social já fragilizada, esse tratamento de choque detonasse a ruptura dos vínculos sociais de coesão, levando ao desespero as massas miseráveis e a classe média
ameaçada e insegura. Uma vez
ultrapassado o ponto de ruptura,
o sistema se desintegra e não tem
mais conserto. Reconstruir um
novo requer tempos longos e muito sofrimento. A Venezuela há
dez anos não consegue sair do poço em que mergulhou por ocasião
dos motins contra Perez em 1992.
Na Argentina, o governo é, dia a
dia, enfraquecido pela falta de
apoio que lhe impuseram, por
castigo, os organismos internacionais e as grandes potências, sem
que as "assembléias de vizinhos"
ou outras formas de deliberação
popular pudessem lidar com os
complexos problemas financeiros.
A principal lição da nova crise
que vive a América Latina tem a
ver com a natureza da democracia, que não pode limitar-se ao estrito respeito das regras do jogo,
mas precisa produzir, em prazo
razoável, resultados práticos e
tangíveis. Isso significa gerar empregos, reduzir a desigualdade,
melhorar os salários e a vida das
maiorias. Mas, para ser capaz de
apresentar resultados, a democracia latino-americana deve primeiro demonstrar que está disposta a reformar-se a si própria, a
rejuvenescer as lideranças políticas, a combater a corrupção, a
edificar um aparato estatal eficiente e enxuto. Nada disso é possível com políticas de fundamentalismo financeiro que destroem
a capacidade de ação do Estado e
esticam a corda do sofrimento dos
mais fracos até o ponto de ruptura. Precisamos não de doses cavalares de uma austeridade perpétua, mas de racionalismo e moderação, de senso de justiça e equilíbrio e, acima de tudo, de perseverança no constante aperfeiçoamento do processo democrático.
Rubens Ricupero, 65, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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