São Paulo, domingo, 21 de abril de 2002

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LUÍS NASSIF

O rei dos escurinhos

Depois de amanhã Geraldo Pereira estaria fazendo 84 anos. Morreu com 37 anos, em 8 de maio de 1955, vítima de uma hemorragia, após uma briga no bar Capela com o marginal que atendia pelo nome de Madame Satã. Era motorista de caminhão de lixo. Hoje em dia é candidato ao título de maior sambista da história.
No final dos anos 60, o grande nome do samba brasileiro ainda era o mineiro Ataulfo Alves, que já dominava nossas noitadas e serenatas. Era aceito nos salões da sociedade e nos botecos, e algo discriminado no morro. Por não ser carioca, por fazer uma música mais "limpa", era visto como "sambista branco". Lá em Poços de Caldas, pouco nos lixávamos para isso. "Saudades da Professorinha", "Laranja Madura" e outras viraram daqueles clássicos que vão dos salões às churrascarias.
No final dos anos 60 começou o processo de reavaliação de Nelson Cavaquinho e de Cartola e começou a discussão sobre quem teria sido o maior sambista negro. Os votos passavam por Ataulfo, Nelson e Cartola, Ismael Silva, pelos jovens brilhantes Elton Medeiros e Paulinho da Viola, e, a partir dos anos 70, por Wilson Baptista e Geraldo Pereira.
A reabilitação de Wilson e Geraldo se deu quando a cultura brasileira se desiludiu com a política e as instituições e passou a enaltecer a marginalidade. Esse mesmo movimento que produziu o cinema marginal ajudou a reabilitar os dois sambistas. Mas eles foram muito maiores do que poderia supor o mero culto da marginalidade.
Não ouso e não quero opinar sobre esse tema de quem foi o maior. Tenho quatro filhas e uma neta e a cada semana me sinto profundamente apaixonado por uma das minhas mulherzinhas. Com os gênios do samba ocorre o mesmo. Coloque um disco de Cartola na vitrola, e ele será o maior. Substitua por um de Nelson Cavaquinho, e não haverá dúvidas de que Nelson é maior. Isso até você colocar Ismael...
Mas minha paixão maior nessa área, depois de descobrir Ismael, foi Geraldo Pereira. Ele nasceu em Juiz de Fora, mudou-se cedo para o Rio de Janeiro, frequentou morros, rodas de malandragem.
Seu primeiro sucesso foi "Se Você Sair Chorando" ("Se você sair chorando / Dizendo que vai embora"), em parceria com Nelson Teixeira, gravado em 1939 por Roberto Paiva. Em 1940, deu início a uma série de parcerias com Wilson Baptista, das quais a mais bem-sucedida foi o histórico "Acertei no Milhar", de 1940, gravado por Moreira da Silva.
Lembro ainda hoje de quando o nosso grupo de teatro de São João da Boa Vista levou a peça "Liberdade, Liberdade", de Millor Fernandes e Flávio Rangel. A peça continha várias músicas, entre as quais "Etelvina". Tínhamos a letra, mas nem a menor idéia sobre a música. Acabei "musicando" -melhor seria dizer "assassinando"- a música. Só chegando a São Paulo conheci a original, assim como o mito que cercava os dois sambistas.
Na verdade, a parceria de Wilson com Pereira era meio heterodoxa. Às vezes um compunha sozinho a música, dava a parceria para o outro e recebia outra parceria em retribuição. Pelo que se conta, "Etelvina" seria apenas do Wilson Baptista.
Geraldo foi um dos pioneiros do samba de breque, o rei do samba sincopado, o cantor da marginalidade. Frequentou as rodas mais barras-pesadas, e fez cinema, como o Diabo Laurindo, no filme "Berlim na Batucada", de Luiz Barros, de 1944.
Em meados dos anos 40 sua estrela começou a brilhar intensamente, quando Ciro Monteiro passou a gravá-lo sistematicamente, e estourou o primeiro sucesso, a "Falsa Baiana" ("Baiana que entra na roda / Só fica parada / Não canta, não samba..."). Em 1945, os Anjos do Inferno gravaram "Bolinha de Papel", e o sincopado de Geraldo passou a dominar o período.
Em 1949, Blecaute estourou com "Que Samba Bom" ("Oh, que samba bom / Oh, que coisa boa / Eu também estou aí estou aí o que é que há"). Em 1953, lança o divertidíssimo "Cabritada Mal Sucedida". A série de clássicos é enorme. "Chegou a Bonitona", com José Baptista, "Jurei", com Cristóvão de Alencar, "Ministério da Economia", com Arnaldo Passos, "Escurinha", "Escurinho", "Sem Compromisso", que Chico Buarque gravaria nos anos 70, quando se apresentava como Julinho da Adelaide.
Pouco depois de sua morte, quando João Gilberto compõe a monumental síntese da bossa-nova com o período anterior, é em "Bolinha de Papel" que ele vai buscar o melhor do sincopado.
Repito o que disse e não volto atrás: não vou nessa de quem é o maior, em se tratando de gênios. Mas nesses dias em que se juntam o aniversário de nascimento e de morte de Geraldo Pereira, coloco suas músicas com todo carinho no CD e proclamo em alto e bom som: foi dos maiores da história.

E-mail - lnassif@uol.com.br



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