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São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

O Congresso e as negociações comerciais

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Em matéria de acordos internacionais, o Congresso brasileiro tem tido um papel passivo, basicamente homologatório, das ações do Executivo. Além de enfraquecer os negociadores brasileiros, isso contraria o espírito da Constituição Federal.
O "caput" do artigo 48 da Constituição estabelece que cabe ao Congresso dispor sobre todas as matérias de competência da União, entre as quais se inclui o comércio exterior, conforme o artigo 22, inciso VIII. Além disso, o artigo 49, inciso I define como da competência exclusiva do Congresso resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Essa competência é reafirmada pelo artigo 84, inciso VIII, que define como competência privativa do presidente da República celebrar tratados, convenções e atos internacionais, "sujeitos a referendo do Congresso Nacional".
Desde que a Constituição foi promulgada, em 1988, o escopo das negociações comerciais, no âmbito multilateral e regional, vem sendo consideravelmente ampliado, por insistência dos países desenvolvidos. Temas como serviços, propriedade intelectual, investimento, defesa da concorrência e compras governamentais foram incorporados à agenda internacional.
Isso significa que os acordos comerciais representam atualmente uma ameaça muito maior à soberania do país e às próprias prerrogativas do Congresso, que perderia a possibilidade de legislar de forma autônoma sobre uma série de questões estratégicas, cuja regulamentação seria progressivamente transferida para a órbita internacional. A tradicional passividade do Congresso tornou-se ainda mais perigosa.
Felizmente, o quadro começa a mudar. Está tramitando projeto de lei do senador Eduardo Suplicy (nº 189, de 2003), que estabelece um mandato negociador para a participação do governo em negociações comerciais. O objeto principal do projeto são as negociações em andamento referentes à Rodada Doha da OMC, à Alca e ao acordo de livre comércio entre a União Européia e o Mercosul.
O que se pretende, por um lado, é permitir ao Congresso exercer com pleno conhecimento de causa a sua prerrogativa constitucional de referendar, ou não, os acordos negociados. Por outro lado, a existência de um mandato bem definido contribui para colocar o Executivo ao abrigo de constrangimentos e pressões por parte dos parceiros nas negociações.
Esse é, como se sabe, um procedimento de que se valem países desenvolvidos há muito tempo. Os EUA, por exemplo, têm a TPA ("Trade Promotion Authority", conhecida antigamente como "Fast Track Authority"). A última autorização concedida pelo Congresso dos EUA, votada em agosto de 2002, é uma lei extensa e minuciosa, que define com muito cuidado não só os objetivos a serem buscados pelo Executivo nas negociações da OMC, da Alca e outras mas também rigorosos mecanismos de monitoramento dos negociadores pelo Congresso.
Embora mais enxuto do que a TPA, o projeto do senador Suplicy contém diversos aspectos fundamentais. Alguns exemplos. Remete à OMC os temas ditos sistêmicos, como serviços, propriedade intelectual relacionada com o comércio, investimentos e compras governamentais, em linha com o que já vem propondo o Itamaraty. Define como condição "sine qua non" a remoção de barreiras às exportações, inclusive das que resultam da utilização abusiva de legislações antidumping. Estabelece, também, que os negociadores brasileiros devem buscar a inclusão nos acordos de cláusulas que permitam proteger as indústrias nascentes e restringir as importações em caso de dificuldades de balanço de pagamentos.
Por outro lado, valendo-se da mesma linguagem adotada pela TPA, o projeto exclui concessões em setores "sensíveis à importação", inclusive os de tecnologia de ponta. Exclui, também, a sub-rogação de empresas privadas nos direitos dos Estados e a discussão de limitações à regulação e controle dos movimentos de capital (objetivos que os EUA vêm buscando insistentemente nas negociações da Alca e em outros fóruns).
O projeto estabelece também que o Congresso acompanhará de perto as negociações comerciais, avaliando seus resultados parciais e finais. Estipula, ainda, que a avaliação se fará obrigatoriamente antes da assinatura de quaisquer acordos, ainda que apenas setoriais.
O projeto foi aprovado na Comissão Mista do Mercosul, com parecer do deputado João Herrmann Neto. Está agora na Comissão de Constituição e Justiça, aguardando parecer do senador Pedro Simon.
O mandato negociador será seguramente aperfeiçoado com as sugestões de parlamentares, representantes dos empresários e dos trabalhadores e especialistas. O próprio Itamaraty, setor do governo que comanda as negociações comerciais, deverá ser chamado a opinar.
Não há dúvida, entretanto, de que o projeto do senador Suplicy é de grande importância. Numa primeira reação, ainda sem conhecer todos os detalhes, o ministro Celso Amorim considerou "extremamente útil e um instrumento de reforço da nossa posição negociadora contar com parâmetros e diretrizes da mesma maneira que o governo americano tem" ("Gazeta Mercantil", 8 a 10 de agosto de 2003, pág. A-4).
O Congresso está dando um passo fundamental para exercer adequadamente as suas prerrogativas constitucionais e fortalecer a posição do Brasil nas negociações internacionais estratégicas que temos pela frente.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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