São Paulo, quinta-feira, 21 de outubro de 2004

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LUÍS NASSIF

A retórica do rentismo

Não resisto a voltar aos paralelos entre a Primeira República e o momento atual. Reside aí a chave para entender esse irracionalismo reiterado da política econômica.
Na coluna de anteontem, defendi a idéia de que os chamados interesses da cafeicultura não podiam ser entendidos de forma homogênea. A cadeia do café tinha duas etapas: a interna e a externa. A interna era composta pelo plantador de café, pelo financiador (casa comissária, bancos), até chegar ao exportador. A partir daí, havia uma outra dinâmica, que era o circuito percorrido pelos dólares (ou libras) até os bancos internacionais.
O que impôs a agenda "liberal" (de livre fluxo de capitais) na Primeira República foram os interesses rentistas da última etapa da cadeia do café, a quem interessavam câmbio livre e juros altos. Esse modelo enreda a economia do café em crises sucessivas, levando, aí sim -pelo poder político do cafeicultor-, à gambiarra das políticas de sustentação de preço que quebram as contas públicas.
Como se deu tal sobrevida a uma política que liquidava com a incipiente produção industrial local, mantinha o país na estagnação e submetia o principal setor produtivo -a cafeicultura- à espada de Dâmocles de crises sucessivas?
A consolidação se dá por meio da "legitimação técnica" de um grupo de economistas que, supostamente -por sua formação internacional-, conheceria as melhores práticas econômicas internacionais.
Esse aval "técnico" é fundamental para vender a idéia de que as demandas do "nosso" grupo representam os verdadeiros interesses nacionais. Qualquer demanda de fora é "impatriótica" (vide "Federalismo Desigual: Políticas Cafeeiras e Equilíbrio Espacial Paretiano", do professor Olímpio Galvão, da Universidade Federal de Pernambuco).
Cometidos os desvios iniciais, trata-se de adiar o máximo possível a redução das vulnerabilidades da economia, por meio da criação de expectativas sucessivas ("espetáculo do crescimento" etc. etc. etc.). Depois, com a vulnerabilidade instalada, perpetua-se o modelo.
Por exemplo, em 1994, Edmar Bacha comemorava a possibilidade de um déficit em conta corrente de US$ 80 bilhões, porque presumivelmente seria preenchido por poupança externa transformada em investimento. Neste ano, produziu um artigo "reconhecendo" que os dólares vieram, mas os investimentos não aconteceram.
Na primeira etapa, o modelo foi mantido por uma falsa solução. Na segunda, por um problema real gerado pela falsa solução. Não se pense em Bacha conspirando de madrugada contra o país. O processo é mais sutil, decorrência de decisões sucessivas de curto prazo, nas quais se contemplam os interesses imediatos do grupo, sem se atinar para o futuro para o país.
Em ambos os períodos violaram-se princípios básicos de mercado -seja criando uma oferta artificial de café ou, agora, de dólar- e princípios básicos de gestão financeira -permitindo um endividamento público irresponsável. Tudo em nome da arte, da ciência e do interesse nacional.

E-mail -
Luisnassif@uol.com.br


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