São Paulo, terça-feira, 21 de dezembro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Rosnadas e mordidas

BENJAMIN STEINBRUCH

Os países da Europa, vencedores e vencidos, saíram da Segunda Guerra Mundial, como se sabe, destroçados. Apesar do fim do conflito, permaneciam rivalidades históricas que atrapalhavam os planos de reconstrução, principalmente entre os dois maiores inimigos de então, a França e a Alemanha.
Nesse contexto, em 1950, o ministro dos Assuntos Externos da França, Robert Schuman, teve a idéia de criar uma autoridade comum para regular as indústrias de carvão e de aço nos dois países. Schuman imaginou que se essas indústrias, que teriam grande importância na reconstrução, trabalhassem integradas, poderiam ajudar a acabar com as velhas rivalidades entre as duas nações, substituindo-as por uma união de interesses econômicos.
A idéia prosperou rapidamente, a ponto de atrair também mais quatro países: Holanda, Luxemburgo, Bélgica e Itália. Assim, em 18 de abril de 1951, esses seis países assinaram o Tratado de Paris, que criou a Ceca (Comunidade Econômica do Carvão e do Aço). Foi um momento único porque, pela primeira vez, países historicamente envolvidos em guerras sangrentas aceitavam a idéia de transferir direitos nacionais de soberania a um órgão situado além de suas fronteiras.
A criação da Ceca acabou sendo o embrião da União Européia. Aos poucos, o modelo foi se estendendo para outros setores -em 1957, criou-se a Comunidade Européia da Energia Atômica e a Comunidade Econômica Européia-, o que levou à construção da UE, com toda a sua complexidade atual, 15 países-membros e moeda única.
É chocante, à luz da história de sucesso da UE, observar o que se passa no Mercosul, onde rivalidades banais, perto das européias do passado, atrapalham a integração da América do Sul. O balanço dos dez anos de Mercosul, comemorados na semana passada, mostra resultados frustrantes. Quando o acordo se iniciou, em 1994, cerca de 14% das exportações brasileiras eram dirigidas para os quatro países do bloco. Hoje, essa proporção caiu para 9%. A mesma tendência se deu nas importações, que caíram de 14% do total para 10%.
Para a Argentina, esses dez anos de Mercosul foram também uma experiência frustrante. Apesar de seguidos superávits comerciais com o Brasil, o país vizinho não conseguiu aumentar suas exportações de manufaturados nem desenvolveu seu parque industrial. Ressalve-se que a origem da desindustrialização da Argentina passa longe do Mercosul e diz respeito a políticas econômicas neoliberais equivocadas, adotadas pelo governo daquele país na década passada, como a abertura indiscriminada do mercado interno e a livre conversibilidade do peso.
Na semana passada, o chanceler argentino, Rafael Bielsa, disse que seu governo "mostrará os dentes" nas negociações da nova fase do Mercosul. Ele inclui, entre as novas exigências, salvaguardas que permitam à Argentina a adoção de cotas ou tarifas quando considerar que exportações brasileiras possam prejudicar interesses da indústria argentina. Essas salvaguardas não podem ser aceitas pelo governo brasileiro, porque ferem o espírito do livre comércio.
O presidente Néstor Kirchner diz que os benefícios do Mercosul "não podem ter uma só direção". A afirmação é desmentida por estatísticas. A Argentina amealhou um saldo comercial extraordinário em sua balança comercial com o Brasil desde a assinatura do tratado, em 1994. Em nove anos, de 1995 a 2003, o superávit acumulado atingiu US$ 10,3 bilhões. Neste ano, pela primeira vez a Argentina tem déficit (US$ 1,5 bilhão de janeiro a outubro), mas o superávit dos dez anos ainda soma US$ 8,8 bilhões.
Rosnar, como ameaçou o chanceler argentino, certamente não é a melhor atitude em matéria de integração regional. Mordida por parte do Brasil também não levará a nada -aliás, a diplomacia brasileira tem mostrado atitude compreensiva, correta, em relação às travessuras argentinas.
A atual crise de relacionamento indica que é preciso relançar o Mercosul em bases mais sólidas, talvez começar tudo de novo e fazer como os europeus em 1951: esquecer rivalidades, unir os países em torno de um objetivo comum importante para todos e, aos poucos, construir uma comunidade em que os interesses econômicos possam levar a uma integração de verdade.


Benjamin Steinbruch, 50, empresário, é diretor-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional e presidente do conselho de administração da empresa.
E-mail - bvictoria@psi.com.br


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