São Paulo, segunda, 21 de dezembro de 1998

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OPINIÃO ECONÔMICA
O artigo de Natal

JOÃO SAYAD
² Chegamos à semana do Natal. A mensagem de Cristo é de renovação. Sempre podemos começar de novo. Sempre seremos perdoados, até no último milésimo de segundo do último minuto antes do Apocalipse.
É muita coisa.
Assim, recomeço, nesta semana do Natal, pensando se fui injusto ou se me arrependo, junto com tantos outros analistas, das críticas dos últimos 52 artigos.
Talvez a administração pública, com tantas pressões de gastos, favores e nomeações, necessite mesmo de controle do déficit público como quer o governo.
O dentista sabe que a alimentação moderna, com açúcar e outras coisas, acaba produzindo muitas cáries. Da mesma forma, o ministro da Fazenda, coitado, tem que batalhar todo dia, o dia todo para evitar essa despesa, a excessiva, aquela, pouco ética, aquela outra, postergável, e assim por diante. Ossos do ofício.
Mesmo no Natal, entretanto, não consigo me conformar com o diagnóstico dos problemas brasileiros.
O dentista sabe que a salvação do mundo não depende de uma boa escovação, do flúor ou do fim das cáries.
O ministro da Fazenda precisa perceber, apesar do dia-a-dia, que gasto público não é pecado nem o déficit, origem dos nossos sofrimentos.
Neste assunto, sinto muito, não consigo me renovar. Começo o novo ano litúrgico tão errado ou tão certo quanto no ano passado. Preocupado com a falta de verbas para educação, bolsas de estudo, pesquisas, saúde, infra-estrutura e com tanto dinheiro gasto com juros.
No câmbio, errei com muitos colegas e muitas vezes. Não desvalorizamos em março de 95, nem em setembro de 1997, nem em outubro de 1998.
Em troca, ganhamos a garantia, forte, dupla e desnecessária de que não corríamos nenhum risco inflacionário.
Pagamos em termos de mais dívida pública, mais juros, mais cortes de despesas não-financeiras, mais recessão.
Será que valeu a pena? Será que a desvalorização lenta, imperceptível e permanente é melhor alternativa do que a desvalorização abrupta? Será que estávamos errados?
É Natal, com um pouco de boa vontade podemos aceitar -está bom, havia muitos riscos, não desvalorizar foi prudente.
Mas como tanta prudência na área cambial combina com tanta imprudência em juros?
A prudência antiinflacionária se transforma em aventura temerária que gera níveis inéditos de desemprego, destruição de empresas, redução de gastos imprescindíveis em outras atividades do governo e um ônus permanente e definitivo para o setor público -a dívida de US$ 300 bilhões-, com juros e amortizações que comprometerão por muitos anos dinheiro e recursos de todos nós.
Deus me ajude, pois não consigo me renovar. Passo a noite de Natal entre amigos e família, rezando, pois como está não pode ficar. Alguém tem que pensar de novo. É a vez do governo.
²


João Sayad, 51, economista, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP e ex-ministro do Planejamento (governo José Sarney), escreve às segundas-feiras nesta coluna.
E-mail: jsayad@ibm.net



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