São Paulo, sexta, 22 de janeiro de 1999

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OPINIÃO ECONÔMICA

Herança estatista

MAILSON DA NÓBREGA

Em obra recente ("Idéias econômicas, decisões políticas: desenvolvimento, estabilidade e populismo", São Paulo, Fapesp, 1998), a socióloga Lourdes Sola realizou excelente análise das decisões de política econômica no período 1946/1964.
O livro, diz ela, "trata das relações entre mudança econômica e mudança política no Brasil no período de vigência da democracia populista, de uma perspectiva que é própria da ciência política".
Mesmo para os familiarizados com o tema, o livro permite rever os acontecimentos do período sob o prisma da análise política e revisitar, nessa perspectiva, os embates entre monetaristas e desenvolvimentistas, cosmopolistas e estruturalistas.
As análises e as teses de Sola ajudam a entender o momento atual, em particular as críticas à política econômica, as reações ao processo de estabilização e as demandas por ações voluntaristas para restaurar o desenvolvimento.
Ao destacar aspecto negligenciado em outros estudos, ela evidencia que, no Brasil, o desenvolvimento foi uma ideologia com força gravitacional irradiada a partir do Estado, paralelamente ao sistema partidário.
Assim, "as ideologias mais eficazes -o desenvolvimento e o liberalismo econômico- eram mais bem articuladas e sistematicamente transmitidas por profissionais que detinham postos- chave no aparelho do Estado. E não, como seria de esperar, a partir de uma articulação engendrada desde seu "locus' clássico, os partidos políticos". No Chile, ao contrário, eles atuavam dentro dos partidos políticos de oposição.
Até hoje, os mais destacados desses profissionais são lembrados como exemplo, principalmente aqueles identificados com o nacional-desenvolvimentismo dos anos 50.
A meu ver, o ponto alto do livro é a análise do governo de Juscelino Kubitscheck, que Sola divide em duas fases.
Na primeira, que abrange os três primeiros anos, os destaques são o Plano de Metas e a atuação paralela dos técnicos encarregados de administrar os incentivos à industrialização.
Na segunda (1958 e 1959), o realce é para os desequilíbrios gerados pelas políticas desenvolvimentistas, pela construção de Brasília e pelo fracasso do programa de estabilização criado para lidar com tais desequilíbrios.
A meu ver, a primeira fase, a dos "anos de confiança", influenciou a visão do desenvolvimento que até hoje habita o imaginário, de que sua realização depende apenas da vontade política e da ação de um grupo de pessoas no governo.
A segunda, a dos anos difíceis, evidencia uma dinâmica do processo de estabilização que se repetiria em outras ocasiões, como agora, quando empresários, líderes sindicais e analistas demandam o abandono das respectivas políticas, ao mesmo tempo em que se formam coalizões de veto no Congresso contra as medidas mais duras de ajuste.
Tal como hoje, houve uma politização dos temas econômicos. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) criticou a disciplina fiscal e monetária destinada a combater a inflação e o desequilíbrio externo e para cumprir o acordo que se negociava com o FMI.
Analisando documento de dezembro de 1958, Sola chama a atenção para a defesa que a CNI faz da inflação "como mecanismo permanente de acumulação de capital". Admitida a funcionalidade da inflação, esta se transformava em meio legítimo de poupança forçada, "destinada a canalizar recursos para investimentos produtivos".
É verdade que o desenvolvimento centrado no Estado, à base de proteção, subsídios, inflação e sobrevalorização cambial, funcionou durante muito tempo e contribuiu para formar uma base industrial complexa e integrada.
Não é menos correto, todavia, assinalar que as políticas industriais do passado desprezaram questões como competição, eficiência, qualidade e proteção ao consumidor. Mais: contribuíram inequivocamente para a nossa vergonhosa concentração de renda.
O Brasil mudou muito sob o impulso da abertura da economia, da estabilidade monetária e da privatização. O curioso é que, apesar da percepção de que o modelo antigo se exauriu, continua forte a demanda de um papel ativo do Estado na economia, ainda que disfarçada por declarações favoráveis à economia de mercado e à competição.
A idéia de que há soluções fáceis e automáticas para os intricados problemas brasileiros ainda é muito presente. Pode ser vista nas entrelinhas das recentes críticas à política econômica e no entusiasmo com que foi saudada a nova política cambial. A defesa de um papel desenvolvimentista para o Ministério da Fazenda é outra das facetas da herança estatista que teima em sobreviver, mesmo nas mentes mais arejadas.


Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.



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