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OPINIÃO ECONÔMICA
Herança estatista
MAILSON DA NÓBREGA
Em obra recente ("Idéias econômicas, decisões políticas: desenvolvimento, estabilidade e
populismo", São Paulo, Fapesp,
1998), a socióloga Lourdes Sola
realizou excelente análise das
decisões de política econômica
no período 1946/1964.
O livro, diz ela, "trata das relações entre mudança econômica e
mudança política no Brasil no
período de vigência da democracia populista, de uma perspectiva que é própria da ciência política".
Mesmo para os familiarizados
com o tema, o livro permite rever
os acontecimentos do período
sob o prisma da análise política e
revisitar, nessa perspectiva, os
embates entre monetaristas e desenvolvimentistas, cosmopolistas e estruturalistas.
As análises e as teses de Sola
ajudam a entender o momento
atual, em particular as críticas à
política econômica, as reações ao
processo de estabilização e as demandas por ações voluntaristas
para restaurar o desenvolvimento.
Ao destacar aspecto negligenciado em outros estudos, ela evidencia que, no Brasil, o desenvolvimento foi uma ideologia
com força gravitacional irradiada a partir do Estado, paralelamente ao sistema partidário.
Assim, "as ideologias mais eficazes -o desenvolvimento e o liberalismo econômico- eram
mais bem articuladas e sistematicamente transmitidas por profissionais que detinham postos-
chave no aparelho do Estado. E
não, como seria de esperar, a
partir de uma articulação engendrada desde seu "locus' clássico, os partidos políticos". No Chile, ao contrário, eles atuavam
dentro dos partidos políticos de
oposição.
Até hoje, os mais destacados
desses profissionais são lembrados como exemplo, principalmente aqueles identificados com
o nacional-desenvolvimentismo
dos anos 50.
A meu ver, o ponto alto do livro
é a análise do governo de Juscelino Kubitscheck, que Sola divide
em duas fases.
Na primeira, que abrange os
três primeiros anos, os destaques
são o Plano de Metas e a atuação
paralela dos técnicos encarregados de administrar os incentivos
à industrialização.
Na segunda (1958 e 1959), o
realce é para os desequilíbrios
gerados pelas políticas desenvolvimentistas, pela construção de
Brasília e pelo fracasso do programa de estabilização criado
para lidar com tais desequilíbrios.
A meu ver, a primeira fase, a
dos "anos de confiança", influenciou a visão do desenvolvimento que até hoje habita o imaginário, de que sua realização
depende apenas da vontade política e da ação de um grupo de
pessoas no governo.
A segunda, a dos anos difíceis,
evidencia uma dinâmica do processo de estabilização que se repetiria em outras ocasiões, como
agora, quando empresários, líderes sindicais e analistas demandam o abandono das respectivas
políticas, ao mesmo tempo em
que se formam coalizões de veto
no Congresso contra as medidas
mais duras de ajuste.
Tal como hoje, houve uma politização dos temas econômicos. A
Confederação Nacional da Indústria (CNI) criticou a disciplina fiscal e monetária destinada
a combater a inflação e o desequilíbrio externo e para cumprir
o acordo que se negociava com o
FMI.
Analisando documento de dezembro de 1958, Sola chama a
atenção para a defesa que a CNI
faz da inflação "como mecanismo permanente de acumulação
de capital". Admitida a funcionalidade da inflação, esta se
transformava em meio legítimo
de poupança forçada, "destinada a canalizar recursos para investimentos produtivos".
É verdade que o desenvolvimento centrado no Estado, à base de proteção, subsídios, inflação e sobrevalorização cambial,
funcionou durante muito tempo
e contribuiu para formar uma
base industrial complexa e integrada.
Não é menos correto, todavia,
assinalar que as políticas industriais do passado desprezaram
questões como competição, eficiência, qualidade e proteção ao
consumidor. Mais: contribuíram
inequivocamente para a nossa
vergonhosa concentração de renda.
O Brasil mudou muito sob o
impulso da abertura da economia, da estabilidade monetária e
da privatização. O curioso é que,
apesar da percepção de que o
modelo antigo se exauriu, continua forte a demanda de um papel ativo do Estado na economia,
ainda que disfarçada por declarações favoráveis à economia de
mercado e à competição.
A idéia de que há soluções fáceis e automáticas para os intricados problemas brasileiros ainda é muito presente. Pode ser vista nas entrelinhas das recentes
críticas à política econômica e no
entusiasmo com que foi saudada
a nova política cambial. A defesa
de um papel desenvolvimentista
para o Ministério da Fazenda é
outra das facetas da herança estatista que teima em sobreviver,
mesmo nas mentes mais arejadas.
Mailson da Nóbrega, 56, ex-ministro da Fazenda (governo José Sarney), sócio da Tendências Consultoria Integrada, escreve às sextas-feiras nesta coluna.
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