São Paulo, sexta, 22 de janeiro de 1999

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ARTIGO

A nova realidade

ROGERIO P. DE ANDRADE

Os recentes movimentos na área cambial deixam bem claro que as autoridades econômicas abandonaram a meta de buscar a estabilização de preços (inflação zero) a qualquer custo e mudaram suas prioridades de forma a equilibrar o balanço de pagamentos. Na verdade, alterações importantes nos fundamentos da política econômica do real já haviam acontecido por ocasião da crise russa. O contágio mostrava que um dos pilares do real, a ampla disponibilidade de capital externo para financiar o balanço de pagamentos com uma taxa de câmbio sobrevalorizada, havia se exaurido e que correções de rumo faziam-se necessárias.
Se o país vivia no início de 1998 um problema de balanço de pagamentos, um ano depois a realidade é de uma crise de balanço de pagamentos. Com a crise asiática, ataques especulativos contra o real levaram a uma queda das reservas, que depois se recuperaram. Neste início de 1999, os ataques especulativos impuseram, além da perda súbita de reservas, o colapso do regime cambial até então vigente baseado em bandas móveis e pré-anunciadas.
A principal diferença do caso brasileiro com os países que passaram por experiências semelhantes, como o México, os asiáticos e a Rússia, é que as autoridades monetárias desistiram de sustentar a banda desejada bem antes da quase completa exaustão das reservas que normalmente caracteriza situações clássicas de crise do balanço de pagamentos que culminam com ataques especulativos. Ainda por cima, se se leva em conta que o empréstimo de emergência capitaneado pelo FMI e pelo BIS não foi suficiente para inverter as expectativas e a fuga de capitais, tem-se na devida conta a gravidade da crise.
Apesar de que até agora a reação do mercado tenha sido favorável e de que tudo parece indicar que a taxa de câmbio de "equilíbrio" definida pelo mercado deva se situar na faixa de 20% a 25% de desvalorização, a política que as autoridades monetárias anunciaram é uma faca de dois gumes. Ao adotar uma espécie de "wait and see policy", a política do "esperar para ver", permitindo a livre flutuação cambial, mas ao mesmo tempo advertindo que intervirá ocasionalmente para controlar movimentos desordenados, o governo introduz mais incerteza quanto à verdadeira política a ser seguida doravante. No limite, isso poderá gerar um ciclo perverso, no qual se alternam crises e retomadas fugazes de confiança, com consequências imprevisíveis.
Além disso, como há elevada incerteza quanto aos desdobramentos futuros da mudança nas prioridades e na condução da política econômica, isto é, como os mercados não possuem conhecimento perfeito acerca de quanto o governo está disposto a queimar de suas reservas para sustentar uma paridade ou uma banda que só ele conhece, poderão se ver encorajados a disparar mais ataques especulativos e testar até onde o governo aceita ir, na esperança de que, cedo ou tarde, conheçam a verdadeira intenção do Banco Central e vençam as apostas.
Com reservas limitadas e com baixo grau de credibilidade, como é o caso atual, a sustentabilidade da banda secreta é incerta; as apostas continuarão até que os agentes especuladores façam o governo explicitar o que pretende ou a credibilidade plena seja restaurada.
A alteração no regime cambial baseado em bandas móveis para um de livre flutuação significou, na prática, o abandono de uma das âncoras que sustentavam o plano de estabilização. A política monetária apertada, a outra âncora usada de forma "ad hoc" toda vez que uma crise maior se manifestava, também terá que ser revista. A esperança de muitos é que a âncora fiscal venha a substituir a âncora cambial. Mas, dado o histórico desabonador acerca da confiabilidade de ajustes fiscais no país, é de prever que as turbulências continuarão por um bom tempo. Mais do que isso, novo círculo vicioso estará criado se a maior carga do ajuste recair sobre a política monetária, pois isso implica minar ao longo do tempo os esforços fiscais e pôr em xeque a nova orientação de política.
A grande questão, portanto, não são os possíveis impactos das desvalorizações cambiais sobre os preços domésticos, que serão pequenos e plenamente absorvíveis no longo prazo, por duas razões. Primeiro, a retração da demanda se encarregará de tornar mais lento o espraiamento desse choque de oferta por meio do sistema econômico. Segundo, o baixo grau de indexação da economia impedirá que uma vez gerada uma inflação maior a mesma se reproduza inercialmente com o tempo.
O grande problema está em se o governo possui competência e graus de liberdade suficientes para fazer uma transição organizada com um mínimo de custo. Afinal, não restam dúvidas de que no longo prazo os benefícios serão muito maiores do que sustentar o nó cambial e financeiro, ao permitir, em tese, uma redução das taxas de juros, a melhoria do déficit em transações correntes e a recuperação das exportações, com evidentes impactos positivos sobre a demanda, a produção e o emprego.
A consistência da nova estratégia de política econômica estará comprometida caso persista a política de taxas de juro elevadas. As desvalorizações cambiais e a introdução encabulada de um regime cambial de livre flutuação têm como objetivo tornar o câmbio mais realista de agora em diante e, dessa forma, inverter o déficit em transações correntes de 4,5% do PIB por meio do maior estímulo às exportações e desestímulo às importações. Mas o aspecto que passou despercebido é que taxas de juro elevadas implicam valorização cambial. Isso cria uma inconsistência interna quanto aos objetivos a ser alcançados.
As autoridades econômicas defrontam-se, portanto, com um "trade off" de que ainda não se deram conta. Se seguem a nova política que tem como meta o equilíbrio do balanço de pagamentos, devem se conformar com uma inflação moderada, pois a taxa de juro terá que cair. Se mantiverem a taxa de juro elevada durante muito tempo com o objetivo de controlar eventuais repercussões inflacionárias das desvalorizações cambiais, sob o novo regime a taxa de câmbio se valorizará de novo, obrigando-as a retornar à política anterior e fixar novamente as variações da taxa de câmbio em nova banda. Nesse último caso, o governo terá que buscar a todo custo restaurar a confiança do mercado, sinalizando de forma convincente que possui instrumentos e credibilidade para conter potenciais ataques especulativos. Mas precisará também de um volume muito mais elevado de reservas internas, o que, na atual conjuntura, é irrealista supor. Portanto uma queda a mais rápida possível das taxas de juro se impõe como necessidade lógica, face à realidade conjuntural e aos novos objetivos de política.


Rogerio P. de Andrade é doutor em economia pela Universidade de Londres (University College).



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