São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Regulação com eficiência e eqüidade

LUCIANO COUTINHO

A ofensiva neoliberal na década de 90 buscou levar a todas as esferas o paradigma da concorrência como meio para alcançar o bem-estar social e a eficiência. No plano doutrinário, a promoção do binômio privatização-competição tornou-se um fim em si. Ao ignorar a força das economias de escala e de escopo, e ao imaginar que se poderia desmantelar ou desintegrar grandes infra-estruturas de rede, intensivas em capital, que caracterizam os principais serviços de utilidade pública sem provocar efeitos contraproducentes, essa utopia provocou fracassos e desperdícios. As tentativas, especialmente na Inglaterra e nos EUA, de subdividir horizontal e/ou verticalmente essas atividades não foram em geral bem sucedidas: desmancharam as economias de escala e de integração sem que se conseguisse induzir A ganhos duradouros de eficiência, qualidade e preços. São exemplos disso vários casos nas áreas de energia e DE transportes.
A primeira lição é que a privatização e a competição funcionaram bem em segmentos tipicamente privados como, por exemplo, em setores industriais que haviam sido desenvolvidos ou absorvidos pelo Estado em decorrência de fragilidades patrimoniais do setor privado (siderurgia, mineração, construção naval e petroquímica). Já na esfera das infra-estruturas e serviços públicos (telecomunicações, energia, saneamento, transportes etc.) a experiência foi problemática. À exceção das telecomunicações, onde uma revolução tecnológica vem modificando o monopólio natural original e abrindo novos modelos de negócio rentáveis para o setor privado (telefonia móvel, serviços via internet etc.), os resultados do paradigma neoliberal foram sofríveis. Com efeito, nos monopólios naturais onde as economias de escala são poderosas, com longos prazos de maturação dos investimentos e com presença de externalidades, o modelo privado tende a provocar dificuldades de difícil superação.
Com efeito, a missão social intrínseca às infra-estruturas que oferecem serviços de utilidade pública é pouco compatível com os objetivos de maximização de lucros do investidor privado. Este requer taxas de retorno muito mais elevadas (que refletem a escassez de capital e os riscos específicos desses empreendimentos) em comparação com a taxa de retorno socialmente desejada ou praticada na esfera pública. Ao requererem taxas de retorno mais altas, os investidores privados necessitam de preços e tarifas também mais elevados para remunerar os seus ativos, em detrimento das condições de acesso pelas populações de baixa renda, tornando muito mais árdua a tarefa do agente regulador.
Por essa razão, para minorar os riscos de exclusão social, o poder público precisa estabelecer esquemas de subsídio (cruzado e/ou orçamentário) para alcançar metas de ampliação da cobertura social. A competição, ao contrário da prédica neoliberal, é, via de regra, pouco eficaz para esses fins. Se fosse possível introduzir a competição (via compartilhamento forçado da infra-estrutura por parte de novos concorrentes), a tendência seria a de se gerar uma intensa disputa pelos segmentos de mercado mais rentáveis (usuários empresariais e de alta renda) com queda de preços nesses segmentos, estreitando-se ou relegando-se a oferta de serviços aos usuários de baixa renda. Ou seja, a competição poderia corroer inconvenientemente a fonte dos subsídios cruzados (lucros nos mercados de alta renda). Por essa razão, a imposição de metas de universalização aos concessionários monopolistas, forçando-os a transferir lucros extraordinários sob a forma de benefícios aos usuários de baixa renda, parece ser uma solução mais próxima à maximização da utilidade social. Mas a calibragem e a parametrização dessas metas não constitui tarefa simples. Se forem excessivamente onerosas aos concessionários, isso pode reduzir ou paralisar os investimentos na expansão do sistema.
A difícil tarefa do regulador público de conciliar a maximização do beneficio social com a fruição de uma rentabilidade satisfatória pelo concessionário privado ou estatal não pode ser alcançada através de normas generalizadoras. Não existe um paradigma ótimo a ser seguido à priori que dispense uma análise das especificidades de cada setor. Não há como desenhar um modelo e respectiva regulação, eficientes, sem um exame do mercado e das condições de rentabilidade, bem como das condições de concorrência e do ritmo das inovações que redefinem os modelos de negócio. Uma compreensão holística é imprescindível para definir qual o modelo mais eficiente e adequado a cada caso.
O problema dos fracos resultados observados no Brasil e na América Latina é que a adesão ideológica ao paradigma neoliberal impediu uma reflexão prévia com a devida profundidade. Tampouco foram desenvolvidas condições suficientes de regulação. Resta, agora, o desafio mais difícil de corrigir e recriar modelos eficientes e socialmente benignos de regulação. Essa mesma advertência vale para a concepção das parcerias público-privadas que o governo pretende deslanchar.


Luciano Coutinho, 54, é professor titular do Instituto de Economia da Universidade de Campinas (Unicamp). Foi secretário-geral do Ministério da Ciência e Tecnologia (1985-88).


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