São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Exportando empregos

RUBENS RICUPERO

Quem lembra ainda do duelo entre Lula e Serra sobre emprego e os números extravagantes de postos de trabalho então prometidos? Exceto no caso do editorial da Folha "Resultado medíocre" (Opinião, 18/2), o tema está largamente ausente do debate público, fascinado, uma vez mais, por escândalos políticos. Pouco mudou desde Carlos Lacerda, 50 anos atrás. A obsessão pequeno-burguesa com a corrupção monopoliza a atenção e dá o tom das discussões. O problema é real e legítima é a preocupação em combatê-lo. O que se questiona é a desmesura, a desproporção, o desequilíbrio de um quadro no qual a corrupção ocupa espaço exclusivo, em contraste com a triste resignação diante da decisão de persistir nos atuais juros exagerados, no fatalismo de conformar-se com crescimento ainda mais medíocre, talvez só de 2,5%. Se a previsão anterior, de 3,5%, já era insuficiente para absorver o desemprego, o que esperar agora senão o agravamento de condições intoleráveis de sofrimento e frustração para milhões de conterrâneos nossos?
Não poderia ser maior a oposição entre essa baixa prioridade do desemprego na agenda política brasileira e a centralidade que ele ocupa em sociedades um pouco mais igualitárias e democráticas. É o que se vê tanto na União Européia como nos EUA. O recente encontro entre Chirac, Schröder e Blair girou em torno do emprego, questão que ameaça a sobrevivência política dos líderes da França e da Alemanha. As propostas de reformas emanadas da reunião se concentram num ponto crucial: como acelerar o crescimento, a fim de eliminar o desemprego estrutural na Europa, em véspera da pressão adicional a ser criada pela adesão de dez novos membros, um dos quais a Polônia, com desemprego de 20%, equivalente ao de São Paulo.
Na campanha presidencial americana, a desocupação é, mais que a Guerra do Iraque, a ameaça principal à reeleição de Bush. As maiores perdas de emprego nos EUA ocorreram em alguns poucos Estados industriais, decisivos nas eleições, a maioria no Meio-Oeste: Michigan, Ohio, Wisconsin e Iowa. Nos quatro anos do corrente governo, foram destruídos 2,8 milhões de postos na indústria, 16% do total. Em comparação, na última recessão (1990) e na lenta recuperação até 1993, 1 milhão de empregos tinham sido eliminados, só 5,8% do total. Isso foi o bastante então para derrotar Bush pai. Não é por outro motivo que John Edwards quase ganhou as primárias em Wisconsin (71 mil empregos perdidos), saltando, em uma semana, de 6% a 34% do eleitorado graças à denúncia da transferência de empregos para o estrangeiro.
A ligação entre comércio e desemprego é o fantasma que paira hoje sobre o sistema comercial. Os estragos são perceptíveis: o protecionismo no caso do aço, a lei agrícola americana, o esvaziamento das negociações tanto da Alca quanto da OMC, devido à recusa de desmantelar a proteção da agricultura na Europa, no Japão e nos EUA. Além do crescente pessimismo acerca da chance de liberalizar o comércio agrícola, o perigo maior em potencial provém de um fenômeno novo, possibilitado pela revolução na tecnologia de informação e telecomunicações: o "outsourcing", isto é, a transferência para outras empresas, no país ou no exterior ("offshoring"), do fornecimento à distância, pela internet, de serviços, que vão dos mais simples -centros de atendimento telefônico, trabalhos auxiliares de escritório- aos mais complexos -programas de software, consultoria, análise, pesquisa e desenvolvimento. Na Europa, ocorre mais o primeiro tipo, enquanto nos EUA, sempre audacioso nas inovações econômicas, está concentrado o segundo.
O "outsourcing" apresenta duas dimensões: a que afeta a indústria manufatureira e a que começa a se generalizar no domínio dos serviços. Em relação aos empregos industriais, a luta para deter a "deslocalização" em direção à China está praticamente perdida. As últimas estimativas do Banco Mundial indicam que os operários industriais chineses custam 30 vezes mais barato que os americanos! A amplitude do movimento mostra que, além das grandes transnacionais, hoje a tendência de fabricar na China muitos componentes dos produtos estendeu-se a milhares de pequenas firmas.
Havia, no entanto, um começo de resignação com o inevitável na área industrial, atenuado pela percepção de que o que contava, na realidade, era a economia de serviços, setor no qual os ricos pareciam imbatíveis. Ora, essa tranqüilidade vê-se abalada quando se comparam os custos do especialista em desenvolver software nos EUA (US$ 60 a hora) com o da Índia (US$ 6) ou o de um digitador de dados (US$ 20 contra US$ 2). A consultora McKinsey calcula que as reduções de custo com a deslocalização em serviços podem atingir entre 65% e 70%. Ninguém pode prever exatamente quantos empregos serão perdidos, as estimativas variando de 6 milhões (Goldman Sachs) a 3,3 milhões até 2015 (Forrester). Em termos globais, o "outsourcing" em serviços representou, em 2003, US$ 320 bilhões, projetando que atingirá US$ 585 bilhões em 2005 e US$ 827 bilhões em 2008, crescendo à taxa anual de 14%. Desse total, uma parcela crescente corresponde ao "offshoring", isto é, as transferências para firmas estrangeiras de menor custo, que devem aumentar 31% ao ano, passando de US$ 52,4 bilhões em 2001 a US$ 346 bilhões em 2008.
Não é difícil entender, diante dessas cifras explosivas, a ansiedade e o medo nos países desenvolvidos, onde os serviços respondem, em média, por quase 70% da atividade e geram mais de dois terços dos empregos. Nos EUA, a campanha de persuasão, pressões ou ameaças contra os deslocalizadores já levou ao cancelamento de vários contratos com a Índia. O principal assessor econômico da Casa Branca foi obrigado a retratar-se depois de declarar que, a longo prazo, o "outsourcing" seria um bem para a economia americana. O Senado acaba agora de aprovar a primeira lei que pune certos tipos de transferência para o estrangeiro de serviços prestados ao governo federal. Esses são apenas os sinais mais recentes do que o impulso para liberalizar o comércio enfrenta o teste mais severo dos últimos 50 anos. O ímpeto liberalizador vinha sobretudo dos EUA e, em grau menor, do Japão e dos europeus, ganhadores líquidos enquanto se tratou de reduzir tarifas industriais. No momento em que os ganhadores potenciais, em exportações e empregos, passam a ser outros -o Brasil e a Argentina em agricultura, a China na indústria manufatureira, a Índia no "outsourcing" de serviços-, haverá condições para manter o ritmo de abertura do sistema comercial?


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).


Texto Anterior: Bradesco diversifica fonte de receita
Próximo Texto: Lições contemporâneas: Regulação com eficiência e eqüidade
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.