São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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LUÍS NASSIF

A família musical brasileira

O teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo, já recebeu os maiores nomes da música brasileira. Foi lá que assisti, certa vez, João Gilberto e seu violão, em um show com oito músicas e 14 bis. A platéia nem tinha forças mais para aplaudir, mas o gênio se oferecia para o bis seguinte.
Mas o que assisti lá, no mês de janeiro, foi daqueles shows a serem preservados em seda e veludo e guardados na parte mais sensível da memória.
As estrelas eram uma família inteira, pais, três filhos e três netos se revezando no palco. O fio condutor era a música brasileira de todos os tempos, uma mistura de música de câmera e de sarau caseiro. No centro do espetáculo, os irmãos Sérgio e Odair Assad, o maior duo violonístico da atualidade. Abaixo deles, Clarice, filha de Sérgio, uma pianista e compositora à altura da herança genética -o pai é um compositor de peças para violão à altura de Egberto Gismonti-, e Carolina, filha de Odair, uma voz linda, de veludo, como uma crooner dos tempos do samba-canção. Compõe o grupo, ainda, a tia Badi Assad e seu estilo overcult.
O que fizeram na primeira metade do show foi de tirar o fôlego de qualquer platéia do planeta. Sérgio e Odair mesclam o virtuosismo da música erudita com o conhecimento do choro, herança de família. Acabaram gerando a maior inovação no modo de tocar choro que ouvi nos últimos anos.
Nos regionais é clássico o contraponto entre o grave do violão de sete cordas (com improvisos no bordão, as cordas graves) e o agudo do cavaquinho (com seqüências de acordes ou arpejos). O que o duo faz é trabalhar em cima desse contraste, Sérgio nos graves, Odair nos agudos, tudo de forma sincronizada, uma elaboração preciosa do que de mais singelo e musical existe na família brasileira, como um quadro de Portinari retratando as festas do interior, ou o trabalho de Villa-Lobos em suas Cirandas...
Os irmãos homens são calados, pouco falam para o público e de si. Vão dando o ritmo e comandando as emoções da platéia, música a música, acorde a acorde. E, quando se pensava que já se tinha chegado ao auge da emoção, entram no palco dona Ica e seu Jorge, os culpados de tudo.
Foram eles que, quando perceberam o talento dos filhos mais velhos, largaram tudo e foram primeiro para São João da Boa Vista, depois para o Rio de Janeiro, atrás dos melhores mestres.
Os dois irmãos correram o mundo, um mora nos Estados Unidos, outro na Bélgica, juntos têm uma agenda internacional repleta. Mas mantiveram íntegra a relação com os pais, com o Brasil, com os botecos, com o mundo dos músicos anônimos. Era só conferir a maneira como eles -o maior duo do mundo- aplaudiam Alessandro, um gênio desconhecido, do nível de Yamandu Costa, que se apresenta na noite paulistana.
Na metade seguinte do show, irmãos e sobrinhos abriram alas para a entrada no palco de seu Jorge e dona Ica. Acompanharam o bandolim de seu Jorge e suas palhetadas seguras. E acompanharam dona Ica.
Quando dona Ica soltou a voz naquele teatro acusticamente preparado, cantando "As Rosas Não Falam", de Cartola, o ambiente foi tomado de uma emoção tão intensa que poderia ser cortada a navalha. Parecia a voz de Elisinha Coelho, a mais moderna das cantoras dos anos 30, ressuscitando na voz de dona Ica.
Foram muitos, mas muitos minutos de aplausos, público em pé. Na saída, Sérgio e Odair não conseguiam falar, recebiam os cumprimentos apenas e mostravam, nos olhos, a emoção de apresentar ao Brasil o sarau da família Assad.
Neste momento, a família está em excursão pelos Estados Unidos. Em cada lugar que passarem, os americanos saberão que o Brasil não é o país do bingo, da lavagem de dinheiro, das contas CC5 e dos escândalos políticos. É o país onde ainda existem milhões de famílias semelhantes, certamente não tão musicais como os Assad, mas que ainda se juntam em torno do apego ao país e se emocionam com a voz de uma mãe cantando Cartola.

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Luisnassif@uol.com.br


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