São Paulo, domingo, 22 de abril de 2007

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UE quer Brasil como parceiro privilegiado

Durão Barroso, comissário da UE, diz que status vai significar criação de mecanismos de cooperação econômica e cultural

Afirmando estar otimista, mas prudente, presidente da Comissão Européia crê que negociação da Rodada Doha termine neste ano

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BRUXELAS

A União Européia está pronta para conferir ao Brasil o estatuto de "parceiro estratégico privilegiado". A informação foi dada à Folha pelo próprio presidente da Comissão Européia, o ex-primeiro-ministro português José Manuel Durão Barroso, para quem esse status é uma "necessidade", porque o Brasil "é uma potência econômica e, política e culturalmente, é cada vez mais interessante".
A parceria estratégia significa, por exemplo, reuniões de cúpula entre as duas partes com certa freqüência, um diálogo político mais estruturado e, também, "mecanismos mais ambiciosos de cooperação econômica, de cooperação cultural e também nas grandes questões globais", explica o político.
Durão Barroso, ressalvando que falava a título pessoal, e não como presidente da Comissão, criticou, sem citá-los nominalmente, líderes latino-americanos que "confirmam a visão estereotipada que há sobre a América Latina, sobre o caudilhismo -de direita ou de esquerda-, sobre o populismo, sobre a exploração demagógica dos sentimentos do povo por mensagens simplistas".
É óbvio que falava, pelo menos, do presidente venezuelano Hugo Chávez. Durão Barroso conversou com a Folha no fim da tarde da última terça-feira, no andar que ocupa no Berlaymont, o edíficio-sede da Comissão Européia, o braço executivo da UE. A seguir, os principais trechos da entrevista:  

FOLHA - Faz pouco, a chanceler alemã, Angela Merkel, disse que a Europa necessita de uma alma. O senhor concorda com essa visão e, em caso positivo, que alma seria essa?
DURÃO BARROSO
- Claro que concordo e me permito lembrar que um de meus antecessores no cargo, Jacques Delors, socialista francês, havia dito o mesmo. É importante dizer que a Europa não é apenas um mercado. Para haver união, tem de haver um acordo básico em torno de valores. A construção européia se assenta em valores muito importantes: liberdade e solidariedade, essencialmente. Costumo dizer que a Europa é um mercado, sem dúvida.
Sem uma base econômica, não podemos ter integração. Mas é também uma união política, tem de ter um projeto político que necessariamente se assenta em valores, e um desses valores essenciais é a solidariedade, porque, sem solidariedade, não há união. É por isso que não consigo ser pessimista a respeito da Europa, como muitos são.
Veja como estava a Europa há 50, 60 anos. Era o Holocausto, era a guerra. Agora temos, pela primeira vez na história da Europa e na história do mundo, um número tão grande de países (27) que se unem por livre vontade em torno de valores como a liberdade, a democracia e os direitos humanos.
Antes, houve muitas tentativas de unificação da Europa, mas pela força. É a primeira vez que ocorre o que costumo chamar de império não-imperial. É o espaço de um império, são quase 500 milhões de pessoas, 27 países, praticamente todo o continente, mas na base da liberdade e da solidariedade.
É notável. Temos problemas, mas, quando vemos esses problemas confrontados com o que se conseguiu, temos razões para estarmos orgulhosos do passado e confiantes no futuro.

FOLHA - Mas, nesse projeto político, não falta uma projeção externa? A Europa nem fala nem atua para o resto do mundo de maneira coordenada e com tanto poder como faria supor o seu peso econômico...
DURÃO BARROSO
- É verdade. É um dos problemas que queremos começar a resolver agora com a questão do tratado institucional [nova designação para a Constituição, rejeitada em plebiscitos na França e na Holanda], porque a Europa não tem ainda os mecanismos de coerência institucional que permitam transformar essa dimensão demográfica, econômica e comercial em política.
Mesmo assim, precisamos ser objetivos. Posso lhe dizer que hoje a Europa conta muito mais que antes. A maneira como os Estados Unidos, a Rússia e a China olham a Europa é com muito mais respeito do que antes.
E por quê? Essencialmente porque a Europa conseguiu alargar-se e sua dimensão conta mais hoje neste mundo da globalização, no qual estão a se formar grandes conjuntos. Temos de um lado os norte-americanos, a primeira potência militar do mundo. Temos potências que são demograficamente impressionantes, como a China e a Índia, e temos a profundidade geográfica da Rússia.
Acho que a Europa conta mais do que contava porque o alargamento lhe deu profundidade política e estratégica.
A comissão que lidero está cada vez mais a construir a nova narrativa da Europa em torno da globalização. Ou seja, precisamente porque a globalização nos impõe determinados desafios é que temos de abandonar a idéia de uma Europa fechada para ser cada vez mais uma Europa aberta do ponto de vista econômico e político.

FOLHA - E o Brasil, que papel teria nessa nova narrativa européia?
DURÃO BARROSO
- Nós estamos a preparar uma comunicação sobre o futuro de nossas relações com o Brasil. Posso, em primeira mão, lhe dizer que vou defender, se for vontade do Brasil e dos Estados-membros da União Européia, que o Brasil deve ter estatuto de nosso parceiro estratégico privilegiado. Acho que é uma necessidade.
E sei que a próxima presidência da União Européia, a presidência portuguesa, está muito inclinada a isso. O Brasil hoje é uma potência global. Faz parte do G4 [com Estados Unidos, União Européia e Índia, para negociar a Rodada Doha, de liberalização comercial], é uma potência econômica e diria que política e culturalmente é cada vez mais interessante.

FOLHA - Parceria estratégica privilegiada significa o que concretamente?
DURÃO BARROSO
- Significa, por exemplo, termos reuniões de cúpula com alguma seqüência e, portanto, um diálogo político mais estruturado. Significa, se for vontade de ambas as partes, mecanismos mais ambiciosos de cooperação econômica, de cooperação cultural, também nas grandes questões globais.
Neste momento, não posso ir muito mais além, porque é um trabalho em curso. Mas sou um adepto dessa subida qualitativa da relação com o Brasil porque entendemos que fazem falta, nesse quadro de globalização, atores responsáveis que nos ajudem a darmos coletivamente ao mundo alguma coerência e o respeito a certos valores.
O Brasil é hoje uma grande democracia e, portanto, faz todo o sentido que assuma também responsabilidades globais com outros parceiros, como a União Européia, os EUA, a Rússia, a Índia e a China. É com prazer que vejo essa evolução, até porque algumas notícias que nos chegam da América Latina vão em outro sentido.

FOLHA - Não há uma certa contradição nessa iniciativa, quando se sabe que essa mesma disposição para uma aliança estratégica não conseguiu se consolidar entre a União Européia e o Mercosul?
DURÃO BARROSO
- Vamos ser sinceros. O Mercosul tem tido algumas dificuldades para afirmar-se e consolidar-se. Dito isso, nós prosseguimos completamente com nosso objetivo de um acordo com o Mercosul. Nossa prioridade está na conclusão da Rodada Doha, em um acordo global.
Estou agora prudentemente otimista em relação à possibilidade de concluir essa Rodada até o fim do ano. Mas todos têm de fazer um esforço. O Brasil tem problemas, em alguns casos comparáveis aos de países em desenvolvimento, mas também tem interesses afirmativos de grande potência.
A Europa está pronta para fazer um esforço desde que também o Brasil e o G20 em geral sejam também abertos em algumas questões que são para nós importantes, notadamente os produtos não-agrícolas, os serviços e as chamadas denominações de origem. Voltando a sua pergunta, se a prioridade é o acordo global, não quer dizer deixar de lado acordos regionais, que não devem ser incompatíveis com esse acordo global e, ao contrário, podem até aprofundá-lo.
É isso o que queremos com o Mercosul e, se não foi possível até agora, se deve mais a dificuldades internas do Mercosul do que a dificuldades na negociação puramente comercial.

FOLHA - Voltando ao que o sr. chamou de "más notícias" que vêm da América Latina, certamente o sr. leu as críticas do presidente Hugo Chávez e do ditador Fidel Castro, dizendo que o programa dos biocombustíveis pode causar a fome de bilhões de pessoas, porque teoricamente o avanço das plantações destinadas a produzir combustíveis substituirá o cultivo de alimentos. A Europa está interessadíssima exatamente no contrário, a ponto de a Comissão ter preparado um projeto ambicioso de combustíveis limpos. Como o sr. analisa essa questão?
DURÃO BARROSO
- É verdade que estamos a avançar nesse terreno. Foi a própria Comissão que apresentou proposta, aceita por unanimidade, para perseguir o objetivo de toda a União Européia ter 10% de biocombustível no "mix" energético de cada país. É um objetivo muito ambicioso, porque não temos aqui a experiência que vocês têm no Brasil. O Brasil foi pioneiro nesse campo e o que fez, quer nos biocombustíveis, quer no "flex fuel", é notável.
Dito isso, quero dizer que também nós temos algumas preocupações no sentido de que os biocombustíveis que queremos desenvolver não tenham efeitos colaterais negativos, notadamente de deflorestação, de prejuízo para o solo e para as águas. Entendemos que é possível fazê-lo.
É por isso que a Comissão Européia tomou a iniciativa de convocar uma conferência sobre energia, para a qual teremos a honra de contar com o presidente Lula [em julho, em Bruxelas], porque sabemos bem do interesse do Brasil e do empenho pessoal dele.

FOLHA - E essas críticas do presidente Chávez?
DURÃO BARROSO
- Não vou fazer agora comentários a outros comentários. O que posso dizer, a título pessoal, não como presidente da Comissão, até porque, como português, considero que faço parte da Comunidade Iberoamericana, é que fico muito triste e preocupado quando alguns líderes latino-americanos confirmam aquela visão estereotipada que há sobre a América Latina, sobre o caudilhismo -seja de direita, seja de esquerda, para mim é igual-, sobre o populismo, sobre a exploração demagógica dos sentimentos do povo por meio de mensagens simplistas.


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