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UE quer Brasil como parceiro privilegiado
Durão Barroso, comissário da UE, diz que status vai significar criação de mecanismos de cooperação econômica e cultural
Afirmando estar otimista, mas prudente, presidente da Comissão Européia crê que negociação da Rodada Doha termine neste ano
CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A BRUXELAS
A União Européia está pronta para conferir ao Brasil o estatuto de "parceiro estratégico
privilegiado".
A informação foi dada à Folha pelo próprio presidente da
Comissão Européia, o ex-primeiro-ministro português José
Manuel Durão Barroso, para
quem esse status é uma "necessidade", porque o Brasil "é uma
potência econômica e, política
e culturalmente, é cada vez
mais interessante".
A parceria estratégia significa, por exemplo, reuniões de
cúpula entre as duas partes
com certa freqüência, um diálogo político mais estruturado
e, também, "mecanismos mais
ambiciosos de cooperação econômica, de cooperação cultural
e também nas grandes questões globais", explica o político.
Durão Barroso, ressalvando
que falava a título pessoal, e não
como presidente da Comissão,
criticou, sem citá-los nominalmente, líderes latino-americanos que "confirmam a visão estereotipada que há sobre a América Latina, sobre o caudilhismo -de direita ou de esquerda-, sobre o populismo,
sobre a exploração demagógica
dos sentimentos do povo por
mensagens simplistas".
É óbvio que falava, pelo menos, do presidente venezuelano
Hugo Chávez.
Durão Barroso conversou
com a Folha no fim da tarde da
última terça-feira, no andar
que ocupa no Berlaymont, o
edíficio-sede da Comissão Européia, o braço executivo da
UE. A seguir, os principais trechos da entrevista:
FOLHA - Faz pouco, a chanceler alemã, Angela Merkel, disse que a Europa necessita de uma alma. O senhor concorda com essa visão e, em
caso positivo, que alma seria essa?
DURÃO BARROSO - Claro que concordo e me permito lembrar
que um de meus antecessores
no cargo, Jacques Delors, socialista francês, havia dito o
mesmo. É importante dizer que
a Europa não é apenas um mercado. Para haver união, tem de
haver um acordo básico em torno de valores. A construção européia se assenta em valores
muito importantes: liberdade e
solidariedade, essencialmente.
Costumo dizer que a Europa
é um mercado, sem dúvida.
Sem uma base econômica, não
podemos ter integração. Mas é
também uma união política,
tem de ter um projeto político
que necessariamente se assenta em valores, e um desses valores essenciais é a solidariedade,
porque, sem solidariedade, não
há união. É por isso que não
consigo ser pessimista a respeito da Europa, como muitos são.
Veja como estava a Europa há
50, 60 anos. Era o Holocausto,
era a guerra. Agora temos, pela
primeira vez na história da Europa e na história do mundo,
um número tão grande de países (27) que se unem por livre
vontade em torno de valores
como a liberdade, a democracia
e os direitos humanos.
Antes, houve muitas tentativas de unificação da Europa,
mas pela força. É a primeira vez
que ocorre o que costumo chamar de império não-imperial. É
o espaço de um império, são
quase 500 milhões de pessoas,
27 países, praticamente todo o
continente, mas na base da liberdade e da solidariedade.
É notável. Temos problemas,
mas, quando vemos esses problemas confrontados com o
que se conseguiu, temos razões
para estarmos orgulhosos do
passado e confiantes no futuro.
FOLHA - Mas, nesse projeto político, não falta uma projeção externa?
A Europa nem fala nem atua para o
resto do mundo de maneira coordenada e com tanto poder como faria
supor o seu peso econômico...
DURÃO BARROSO - É verdade. É
um dos problemas que queremos começar a resolver agora
com a questão do tratado institucional [nova designação para
a Constituição, rejeitada em
plebiscitos na França e na Holanda], porque a Europa não
tem ainda os mecanismos de
coerência institucional que
permitam transformar essa dimensão demográfica, econômica e comercial em política.
Mesmo assim, precisamos
ser objetivos. Posso lhe dizer
que hoje a Europa conta muito
mais que antes. A maneira como os Estados Unidos, a Rússia
e a China olham a Europa é
com muito mais respeito do
que antes.
E por quê? Essencialmente
porque a Europa conseguiu
alargar-se e sua dimensão conta mais hoje neste mundo da
globalização, no qual estão a se
formar grandes conjuntos. Temos de um lado os norte-americanos, a primeira potência
militar do mundo. Temos potências que são demograficamente impressionantes, como
a China e a Índia, e temos a profundidade geográfica da Rússia.
Acho que a Europa conta
mais do que contava porque o
alargamento lhe deu profundidade política e estratégica.
A comissão que lidero está
cada vez mais a construir a nova narrativa da Europa em torno da globalização. Ou seja,
precisamente porque a globalização nos impõe determinados
desafios é que temos de abandonar a idéia de uma Europa fechada para ser cada vez mais
uma Europa aberta do ponto de
vista econômico e político.
FOLHA - E o Brasil, que papel teria
nessa nova narrativa européia?
DURÃO BARROSO - Nós estamos a
preparar uma comunicação sobre o futuro de nossas relações
com o Brasil. Posso, em primeira mão, lhe dizer que vou defender, se for vontade do Brasil
e dos Estados-membros da
União Européia, que o Brasil
deve ter estatuto de nosso parceiro estratégico privilegiado.
Acho que é uma necessidade.
E sei que a próxima presidência
da União Européia, a presidência portuguesa, está muito inclinada a isso.
O Brasil hoje é uma potência
global. Faz parte do G4 [com
Estados Unidos, União Européia e Índia, para negociar a
Rodada Doha, de liberalização
comercial], é uma potência
econômica e diria que política e
culturalmente é cada vez mais
interessante.
FOLHA - Parceria estratégica privilegiada significa o que concretamente?
DURÃO BARROSO - Significa, por
exemplo, termos reuniões de
cúpula com alguma seqüência
e, portanto, um diálogo político
mais estruturado. Significa, se
for vontade de ambas as partes,
mecanismos mais ambiciosos
de cooperação econômica, de
cooperação cultural, também
nas grandes questões globais.
Neste momento, não posso ir
muito mais além, porque é um
trabalho em curso. Mas sou um
adepto dessa subida qualitativa
da relação com o Brasil porque
entendemos que fazem falta,
nesse quadro de globalização,
atores responsáveis que nos
ajudem a darmos coletivamente ao mundo alguma coerência
e o respeito a certos valores.
O Brasil é hoje uma grande
democracia e, portanto, faz todo o sentido que assuma também responsabilidades globais
com outros parceiros, como a
União Européia, os EUA, a Rússia, a Índia e a China. É com
prazer que vejo essa evolução,
até porque algumas notícias
que nos chegam da América Latina vão em outro sentido.
FOLHA - Não há uma certa contradição nessa iniciativa, quando se sabe que essa mesma disposição para
uma aliança estratégica não conseguiu se consolidar entre a União Européia e o Mercosul?
DURÃO BARROSO - Vamos ser
sinceros. O Mercosul tem tido
algumas dificuldades para afirmar-se e consolidar-se. Dito isso, nós prosseguimos completamente com nosso objetivo de
um acordo com o Mercosul.
Nossa prioridade está na conclusão da Rodada Doha, em um
acordo global.
Estou agora prudentemente
otimista em relação à possibilidade de concluir essa Rodada
até o fim do ano. Mas todos têm
de fazer um esforço. O Brasil
tem problemas, em alguns casos comparáveis aos de países
em desenvolvimento, mas também tem interesses afirmativos
de grande potência.
A Europa está pronta para fazer um esforço desde que também o Brasil e o G20 em geral
sejam também abertos em algumas questões que são para
nós importantes, notadamente
os produtos não-agrícolas, os
serviços e as chamadas denominações de origem.
Voltando a sua pergunta, se a
prioridade é o acordo global,
não quer dizer deixar de lado
acordos regionais, que não devem ser incompatíveis com esse acordo global e, ao contrário,
podem até aprofundá-lo.
É isso o que queremos com o
Mercosul e, se não foi possível
até agora, se deve mais a dificuldades internas do Mercosul do
que a dificuldades na negociação puramente comercial.
FOLHA - Voltando ao que o sr. chamou de "más notícias" que vêm da
América Latina, certamente o sr. leu
as críticas do presidente Hugo Chávez e do ditador Fidel Castro, dizendo que o programa dos biocombustíveis pode causar a fome de bilhões
de pessoas, porque teoricamente o
avanço das plantações destinadas a
produzir combustíveis substituirá o
cultivo de alimentos. A Europa está
interessadíssima exatamente no
contrário, a ponto de a Comissão ter
preparado um projeto ambicioso de
combustíveis limpos. Como o sr.
analisa essa questão?
DURÃO BARROSO - É verdade que
estamos a avançar nesse terreno. Foi a própria Comissão que
apresentou proposta, aceita
por unanimidade, para perseguir o objetivo de toda a União
Européia ter 10% de biocombustível no "mix" energético de
cada país. É um objetivo muito
ambicioso, porque não temos
aqui a experiência que vocês
têm no Brasil. O Brasil foi pioneiro nesse campo e o que fez,
quer nos biocombustíveis, quer
no "flex fuel", é notável.
Dito isso, quero dizer que
também nós temos algumas
preocupações no sentido de
que os biocombustíveis que
queremos desenvolver não tenham efeitos colaterais negativos, notadamente de deflorestação, de prejuízo para o solo e
para as águas. Entendemos que
é possível fazê-lo.
É por isso que a Comissão
Européia tomou a iniciativa de
convocar uma conferência sobre energia, para a qual teremos a honra de contar com o
presidente Lula [em julho, em
Bruxelas], porque sabemos
bem do interesse do Brasil e do
empenho pessoal dele.
FOLHA - E essas críticas do presidente Chávez?
DURÃO BARROSO - Não vou fazer
agora comentários a outros comentários. O que posso dizer, a
título pessoal, não como presidente da Comissão, até porque,
como português, considero que
faço parte da Comunidade Iberoamericana, é que fico muito
triste e preocupado quando alguns líderes latino-americanos
confirmam aquela visão estereotipada que há sobre a América Latina, sobre o caudilhismo -seja de direita, seja de esquerda, para mim é igual-, sobre o populismo, sobre a exploração demagógica dos sentimentos do povo por meio de
mensagens simplistas.
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