São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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RUBENS RICUPERO

Nunca terá conserto?


Por quanta humilhação e dor teremos ainda de passar antes de mobilizar a energia para consertar o Brasil?

NÃO TEM nem nunca terá conserto ou decência, vergonha ou governo. É perturbadora, 31 anos depois, a impressão de que os versos terríveis de Chico Buarque não envelheceram e continuam a descrever a realidade atual.
Quem não tinha conserto na data da música, em 1976, era a ditadura. Mas essa acabou há mais de uma geração. Os que nunca a conheceram talvez olhem o que se passa e sintam como o quinhentista castelhano Jorge Manrique: "Cualquier tiempo pasado fue mejor".
Não é verdade, sabemos. Pode-se afirmar, porém, que o regime que tomou o lugar da ditadura tem decência, vergonha ou juízo? Sentimentos como esses e outros -humilhação, tristeza, desesperança, indignação- constituem a essência dos editoriais e, de modo mais significativo, das cartas dos leitores de jornais.
"Me duele España", "a Espanha me causa dor", a frase de Miguel de Unamuno acabou por definir a geração espanhola de 1898, ano em que a decadência de séculos culminou na humilhante derrota da guerra hispano-americana.
Algo parecido tomou conta do Brasil de uns tempos para cá. Predomina a sensação de fracasso difuso e generalizado. Não se trata tanto da mediocridade econômica. Afinal, há anos ninguém leva a sério a idéia de competir com a China, a Índia, os asiáticos, quanto mais a de alcançar os desenvolvidos europeus e ianques!
É como que a suspeita insidiosa da inexistência de qualquer setor da vida nacional -política, cultura, justiça, valores morais- capaz de compensar o que perdemos ao desaprender de crescer.
Se tivéssemos mais justiça, em todos os sentidos, se houvesse menos crime e violência, se tratássemos melhor nossos índios, se parássemos de destruir a mata atlântica e a Amazônia, se Jobim e Vinícius, Chico Buarque, Caetano, João Gilberto, Gil, Guimarães Rosa, Clarice tivessem 20 ou 30 anos, se o Congresso e os partidos parecessem estar melhorando, um pouquinho que fosse, poderíamos consolar-nos.
Coisas boas com certeza estão acontecendo. Deve haver gênios adolescentes ignorados, romances ou músicas magistrais nas gavetas.
Tudo isso, contudo, soa irrisório diante do dilúvio de caos, corrupção, barbárie, únicas áreas em que o país não cessa de superar seus sinistros recordes.
Ao escrever depoimento para livro da jornalista inglesa Jan Rocha sobre o massacre dos ianomâmi em meados de 1993, percebi como perdemos sensibilidade a doses cada vez maiores de horror.
Na época, assumi o Ministério da Amazônia, criado devido ao genocídio e antecedido pelas chacinas do Carandiru e dos meninos de rua da Candelária. Dias após minha chegada, ocorria o massacre de Vigário Geral. Fui ao presidente Itamar Franco e propus que ele decretasse luto nacional e mobilizasse a nação no repúdio à barbárie.
A idéia não prosperou e é possível que tivesse dado em nada. Conto o episódio apenas para mostrar que os massacres tanto se banalizaram desde então que hoje a ninguém ocorreria similar sugestão.
Depois da derrota e da geração de 1898, os espanhóis tiveram ainda de passar pelas atrocidades da Guerra Civil e da ditadura franquista, antes do renascimento atual.
O Brasil de agora nos dói, nos faz sofrer. Não "está na natureza" que ele nunca terá vergonha, juízo ou conserto. Por quanta humilhação e dor teremos ainda de passar antes de mobilizar a energia para consertá-lo?


RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.


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