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RUBENS RICUPERO
Nunca terá conserto?
Por quanta humilhação e dor teremos ainda de passar antes de mobilizar a energia para consertar o Brasil?
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NÃO TEM nem nunca terá conserto ou decência, vergonha
ou governo. É perturbadora,
31 anos depois, a impressão de que
os versos terríveis de Chico Buarque
não envelheceram e continuam a
descrever a realidade atual.
Quem não tinha conserto na data
da música, em 1976, era a ditadura.
Mas essa acabou há mais de uma geração. Os que nunca a conheceram
talvez olhem o que se passa e sintam
como o quinhentista castelhano
Jorge Manrique: "Cualquier tiempo
pasado fue mejor".
Não é verdade, sabemos. Pode-se
afirmar, porém, que o regime que tomou o lugar da ditadura tem decência, vergonha ou juízo?
Sentimentos como esses e outros
-humilhação, tristeza, desesperança, indignação- constituem a essência dos editoriais e, de modo
mais significativo, das cartas dos leitores de jornais.
"Me duele España", "a Espanha
me causa dor", a frase de Miguel de
Unamuno acabou por definir a geração espanhola de 1898, ano em que a
decadência de séculos culminou na
humilhante derrota da guerra hispano-americana.
Algo parecido tomou conta do
Brasil de uns tempos para cá. Predomina a sensação de fracasso difuso e
generalizado. Não se trata tanto da
mediocridade econômica. Afinal, há
anos ninguém leva a sério a idéia de
competir com a China, a Índia, os
asiáticos, quanto mais a de alcançar
os desenvolvidos europeus e ianques!
É como que a suspeita insidiosa da
inexistência de qualquer setor da vida nacional -política, cultura, justiça, valores morais- capaz de compensar o que perdemos ao desaprender de crescer.
Se tivéssemos mais justiça, em todos os sentidos, se houvesse menos
crime e violência, se tratássemos
melhor nossos índios, se parássemos de destruir a mata atlântica e a
Amazônia, se Jobim e Vinícius, Chico Buarque, Caetano, João Gilberto,
Gil, Guimarães Rosa, Clarice tivessem 20 ou 30 anos, se o Congresso e
os partidos parecessem estar melhorando, um pouquinho que fosse,
poderíamos consolar-nos.
Coisas boas com certeza estão
acontecendo. Deve haver gênios
adolescentes ignorados, romances
ou músicas magistrais nas gavetas.
Tudo isso, contudo, soa irrisório
diante do dilúvio de caos, corrupção,
barbárie, únicas áreas em que o país
não cessa de superar seus sinistros
recordes.
Ao escrever depoimento para livro da jornalista inglesa Jan Rocha
sobre o massacre dos ianomâmi em
meados de 1993, percebi como perdemos sensibilidade a doses cada
vez maiores de horror.
Na época, assumi o Ministério da
Amazônia, criado devido ao genocídio e antecedido pelas chacinas do
Carandiru e dos meninos de rua da
Candelária. Dias após minha chegada, ocorria o massacre de Vigário
Geral. Fui ao presidente Itamar
Franco e propus que ele decretasse
luto nacional e mobilizasse a nação
no repúdio à barbárie.
A idéia não prosperou e é possível
que tivesse dado em nada. Conto o
episódio apenas para mostrar que os
massacres tanto se banalizaram
desde então que hoje a ninguém
ocorreria similar sugestão.
Depois da derrota e da geração de
1898, os espanhóis tiveram ainda de
passar pelas atrocidades da Guerra
Civil e da ditadura franquista, antes
do renascimento atual.
O Brasil de agora nos dói, nos faz
sofrer. Não "está na natureza" que
ele nunca terá vergonha, juízo ou
conserto. Por quanta humilhação e
dor teremos ainda de passar antes
de mobilizar a energia para consertá-lo?
RUBENS RICUPERO , 70, diretor da Faculdade de Economia
da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco). Escreve quinzenalmente, aos domingos, nesta coluna.
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