São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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LUÍS NASSIF

A última noite de Vargas

Durante anos de convivência, o embaixador Walther Moreira Salles tinha uma preocupação especial com sua biografia. Queria deixar registradas as impressões sobre os principais homens públicos com os quais conviveu. Eram aulas sucessivas sobre o país, da parte de quem, dos anos 30 aos 90, testemunhara todos os episódios da história com olhos contemporâneos.
Indagado sobre qual o maior brasileiro que conhecera, nem vacilava: Getúlio Vargas. O pensamento começa a voar. Dr. Walther parece se esquecer da minha presença ali. Agora, está com San Thiago Dantas em um carro, ouvindo a rádio Globo, quando a programação é interrompida pela "notícia extraordinária": Vargas havia se suicidado.
Imediatamente San Thiago ordenou ao chofer que rumasse para o Palácio do Catete. Eram 20h30 quando ambos entraram no Palácio. A essa altura as rádios informavam que "O Globo" e a "Tribuna da Imprensa" estavam cercados por populares enfurecidos.
San Thiago rumou para o "O Globo", cercado por uma multidão que uivava de dor e ódio. Walther subiu para o último andar do Palácio. Não chegou a entrar no quarto onde Vargas se suicidara. O Palácio era grande e nele contrastavam fortemente uma confusão de pessoas correndo de um lado para o outro e a sensação de vazio, de solidão.
Mais tarde, começaram a chegar pessoas. Juscelino foi o único governador a se apresentar, com Amaral Peixoto, casado com Alzira, a filha predileta de Vargas.
Walther deixou o Palácio por algumas horas, foi à sua casa e retornou logo depois. Cumprimentou Alzira e Amaral, não conseguiu ver dona Darcy e permaneceu no velório até a hora da partida, dividindo um banquinho no primeiro andar, com Oswaldo Aranha, em longas reflexões sobre o processo de isolamento de Vargas.
As suspeitas de conspiração internacional vazavam por todos os poros da República e impregnavam as paredes do Palácio. Aranha reiterava acusações sobre a queda nos preços do café, atribuindo-a a pressões externas.
Conhecedor do mercado, Walther não via fundamento em suas acusações. O Brasil havia montado uma manobra especulativa que logrou elevar os preços do café a 86 centavos, mas não conseguiu sustentá-los. A operação foi estimulada pelo governo e financiada pelo Banco do Brasil. A Bolsa de Nova York abriu investigações sobre as operações brasileiras, que ajudaram a precipitar a queda das cotações.
Aranha acreditava em conspiração internacional e em disco voador. Às vezes o cansava com aquela conversa. Em certo momento, Walther nem mais o ouvia. Seu pensamento, agora, estava no Palácio Rio Negro, em Petrópolis, onde, no último verão antes da tragédia, teve o último encontro com Vargas.
O mais polido dos homens que conhecera conservava ainda seu senso de humor e a risada inigualável. Mas demonstrava certa melancolia e solidão. Alguns meses antes, quando Walther lhe pediu que o dispensasse das funções de embaixador, Vargas comentou a respeito de um deputado governista, que o acusara de ser "mais um embaixador americano em Washington". Walther não quis saber quem era.
"Embaixador, o senhor não pergunta quem é o deputado?", estranhou Vargas.
"Eu já sei, porque tivemos incidente semelhante no Itamaraty."
Era Euvaldo Lodi, presidente da Confederação Nacional da Indústria.
"Mas o senhor sabe qual foi minha resposta?"
"Não."
" Eu disse a ele que tinha a Câmara para denunciar, não a mim."
E soltou uma gargalhada, jogando a cabeça para trás. Depois, convidou Walther para jantar. O embaixador disse que era uma grande honra, mas pedia que telefonasse para uma casa para a qual tinha um compromisso agendado.
Vargas interrompeu:
"Então meu convite não é mais válido. O senhor é moço, precisa se divertir no convívio de gente agradável."
"Mas gostaria de jantar consigo."
"Não mais."
Desceram no elevador, saíram pelo Salão de Despachos, Na alameda, entre o Palácio de Rezende, Vargas pôs o chapéu e cruzou os braços atrás das costas:
"Boa noite."
E atravessou sozinho para seu jantar solitário.

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