São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Casa Grande e Senzala

LUIZ GONZAGA BELLUZZO


Há quem possa se assustar com a fieira de estopadas que está à espreita do governo FHC. Já foi a vez dos caminhoneiros, agora os agricultores. Ainda virão os sem-terra, os 100 mil, os metalúrgicos, os funcionários públicos e tutti quanti. Só não se manifestam por ora as novas classes silenciosas produzidas pela globalização e, graças aos céus, descobertas a tempo pelo sociólogo-presidente.
Diante da onda de insatisfação, o governo, os editoriais da grande imprensa e -diria Claude Rains em Casablanca- os colunistas de sempre tratam de fustigar a insólita e escandalosa convergência de interesses: os sem-terra juntam seus protestos aos dos grandes proprietários da UDR; os metalúrgicos provavelmente estarão ao lado dos industriais protecionistas, enquanto os funcionários públicos vão engrossar o coro de lamentações dos pequenos e médios empresários ou dos mutuários da casa própria. Isso para não falar dos aposentados aliando-se à massa dos desempregados.
Editorialistas e colunistas, os que se apresentam como porta-vozes do interesse geral, da racionalidade abstrata, erguem sua voz contra a récua de particularismos nefandos e mesquinhos dispostos a fazer descarrilar o comboio da estabilização.
Nos círculos em que ainda sobrevive algum respeito pela objetividade -sejam eles da situação ou da oposição-, há poucas dúvidas quanto à força capaz de reunir interesses tão díspares e projetos de sociedade tão antagônicos. Até mesmo a Xuxa e a Sasha, em permanente vilegiatura na Ilha de Caras, sabem que tal prodígio vem sendo produzido por uma política econômica que obriga a maioria da população a apertar os cintos, perder o emprego, fechar a empresa ou esfolar a família para pagar dívidas.
Isso vem sendo feito, naturalmente, em nome da manutenção da "estabilidade". Mas a estabilidade se restringe (ou se restringia), de fato, ao bom comportamento da inflação. Como falar em estabilidade diante das condições de rolagem da dívida pública -em que o Banco Central é obrigado a ampliar a colocação de títulos pós-fixados, cedendo às exigências de taxas de juros elevadas? O comportamento dos juros, assim como as pressões sobre o câmbio, revela, na verdade, um acentuada instabilidade. Por isso, muito antes do movimento dos caminhoneiros ou do protesto dos agricultores, surgiram sinais de erosão da credibilidade da política econômica. Esse desgaste deve-se, é claro, a fatores "exógenos", como o recrudescimento da aversão ao risco -urbi et orbi- dos investidores "globais". Mas também corresponde à percepção de que não são tão fáceis de obter uma reversão na trajetória da relação dívida interna/ PIB e uma alentadora redução do déficit em conta corrente do balanço de pagamentos.
O governo e a imprensa continuam repetindo que a solução desses problemas depende da aprovação das reformas -sobretudo a fiscal e a da Previdência Social. É inegável que é necessário melhorar a qualidade do sistema tributário, escoimá-lo de distorções que afetam o investimento e as exportações. Também não há que recusar a necessidade de se corrigirem as desigualdades de direitos na Previdência.
Nada disso, porém, será suficiente para aplacar a voracidade dos passivos -interno e externo- acumulados pela imprevidência e pela incompetência da política de juros e de câmbio dos quatro primeiros anos do Plano Real. Está mais do que óbvio que a vulnerabilidade externa impõe um limite à queda dos juros. A aritmética até hoje não conseguiu arranjar uma fórmula para o declínio da relação dívida/PIB quando a taxa de juros é (muito) mais elevada do que a taxa de crescimento da economia.
Falando em crescimento, é de espantar o descaso das análises em voga com os limites mais rígidos impostos à expansão da economia pelo balanço de pagamentos. Aqui está o nó da questão. A ampliação das despesas com juros e remessas dos demais rendimentos do capital -contrastados com as magros ingressos do dinheiro enviado pelos dos dekasseguis- configura uma situação de déficit estrutural, causado pela aventura da "nova" inserção externa da economia brasileira: o endividamento irresponsável em moeda estrangeira, as privatizações e a venda de empresas nacionais. Isso significa que, daqui para a frente, o crescimento do superávit comercial deverá ser muito expressivo para que o déficit em conta corrente seja contido dentro de limites razoáveis e financiáveis.



Luiz Gonzaga Belluzzo, 57, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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