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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Casa Grande e Senzala
LUIZ GONZAGA BELLUZZO
Há quem possa se assustar
com a fieira de estopadas que está à espreita do governo FHC. Já
foi a vez dos caminhoneiros,
agora os agricultores. Ainda virão os sem-terra, os 100 mil, os
metalúrgicos, os funcionários
públicos e tutti quanti. Só não se
manifestam por ora as novas
classes silenciosas produzidas
pela globalização e, graças aos
céus, descobertas a tempo pelo
sociólogo-presidente.
Diante da onda de insatisfação, o governo, os editoriais da
grande imprensa e -diria
Claude Rains em Casablanca-
os colunistas de sempre tratam
de fustigar a insólita e escandalosa convergência de interesses:
os sem-terra juntam seus protestos aos dos grandes proprietários da UDR; os metalúrgicos
provavelmente estarão ao lado
dos industriais protecionistas,
enquanto os funcionários públicos vão engrossar o coro de lamentações dos pequenos e médios empresários ou dos mutuários da casa própria. Isso para
não falar dos aposentados
aliando-se à massa dos desempregados.
Editorialistas e colunistas, os
que se apresentam como porta-vozes do interesse geral, da racionalidade abstrata, erguem
sua voz contra a récua de particularismos nefandos e mesquinhos dispostos a fazer descarrilar o comboio da estabilização.
Nos círculos em que ainda sobrevive algum respeito pela objetividade -sejam eles da situação ou da oposição-, há poucas dúvidas quanto à força capaz de reunir interesses tão díspares e projetos de sociedade tão
antagônicos. Até mesmo a Xuxa
e a Sasha, em permanente vilegiatura na Ilha de Caras, sabem
que tal prodígio vem sendo produzido por uma política econômica que obriga a maioria da
população a apertar os cintos,
perder o emprego, fechar a empresa ou esfolar a família para
pagar dívidas.
Isso vem sendo feito, naturalmente, em nome da manutenção da "estabilidade". Mas a estabilidade se restringe (ou se restringia), de fato, ao bom comportamento da inflação. Como
falar em estabilidade diante das
condições de rolagem da dívida
pública -em que o Banco Central é obrigado a ampliar a colocação de títulos pós-fixados, cedendo às exigências de taxas de
juros elevadas? O comportamento dos juros, assim como as
pressões sobre o câmbio, revela,
na verdade, um acentuada instabilidade. Por isso, muito antes
do movimento dos caminhoneiros ou do protesto dos agricultores, surgiram sinais de erosão da
credibilidade da política econômica. Esse desgaste deve-se, é
claro, a fatores "exógenos", como o recrudescimento da aversão ao risco -urbi et orbi- dos
investidores "globais". Mas
também corresponde à percepção de que não são tão fáceis de
obter uma reversão na trajetória da relação dívida interna/
PIB e uma alentadora redução
do déficit em conta corrente do
balanço de pagamentos.
O governo e a imprensa continuam repetindo que a solução
desses problemas depende da
aprovação das reformas -sobretudo a fiscal e a da Previdência Social. É inegável que é necessário melhorar a qualidade
do sistema tributário, escoimá-lo de distorções que afetam o investimento e as exportações.
Também não há que recusar a
necessidade de se corrigirem as
desigualdades de direitos na
Previdência.
Nada disso, porém, será suficiente para aplacar a voracidade dos passivos -interno e externo- acumulados pela imprevidência e pela incompetência da política de juros e de câmbio dos quatro primeiros anos
do Plano Real. Está mais do que
óbvio que a vulnerabilidade externa impõe um limite à queda
dos juros. A aritmética até hoje
não conseguiu arranjar uma
fórmula para o declínio da relação dívida/PIB quando a taxa
de juros é (muito) mais elevada
do que a taxa de crescimento da
economia.
Falando em crescimento, é de
espantar o descaso das análises
em voga com os limites mais rígidos impostos à expansão da
economia pelo balanço de pagamentos. Aqui está o nó da questão. A ampliação das despesas
com juros e remessas dos demais
rendimentos do capital -contrastados com as magros ingressos do dinheiro enviado pelos
dos dekasseguis- configura
uma situação de déficit estrutural, causado pela aventura da
"nova" inserção externa da economia brasileira: o endividamento irresponsável em moeda
estrangeira, as privatizações e a
venda de empresas nacionais.
Isso significa que, daqui para a
frente, o crescimento do superávit comercial deverá ser muito
expressivo para que o déficit em
conta corrente seja contido dentro de limites razoáveis e financiáveis.
Luiz Gonzaga Belluzzo, 57, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria
Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de
São Paulo (governo Quércia).
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